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VIAGEM
PELA AMÉRICA DO SUL EM 1967
1ª PARTE
OS VÔOS DE CAMPO GRANDE A LA
PAZ
por Francisco Souto Neto
Durante anos esteve perdido o
meu diário da viagem que realizei pela América do Sul em 1967. Meu acervo de
papéis é muito grande e ontem, mexendo no conteúdo de velhas caixas que já estavam
fechadas quando da minha última mudança de domicílio, tive a surpresa de
encontrar tais memórias “passadas a limpo”, isto é, datilografadas e
mimeografadas – o mimeógrafo era, há mais de meio século, o meio de reprodução
de textos, quando o xerox ainda não existia. O mimeógrafo é hoje um sistema
obsoleto e naquela época considerado perigoso devido às doenças decorrentes do
uso, além de apresentar baixa qualidade na cópia e lentidão no serviço.
São dezenas de páginas em
tamanho ofício (o papel é bem mais longo que o atual padrão conhecido como A4)
que datilografei na antiga ortografia.
A viagem abrangeu Bolívia,
Peru, Chile, Argentina e Uruguai. Mas neste artigo de hoje vou referir-me
exclusivamente as etapas da viagem de Campo Grande até La Paz, feita em dois
dias a bordo dos antigos aviões comerciais com hélices.
Minha mãe acompanhou-me até a
Campo Grande, sua cidade natal, onde ficou hospedada pelo seu irmão Cláudio
enquanto segui viagem.
Do próximo parágrafo em
diante, farei uma transcrição direta das minhas palavras escritas naquela época.
Passados 55 anos, é interessante observar os detalhes de como eram feitas as
viagens e as impressões que os lugares causaram a este então jovem viajante. A
transcrição do meu diário de viagem vai entre aspas, e quando eu achar
necessário intervir no texto, farei isto entre colchetes.
O VOO
ENTRE CAMPO GRANDE E CORUMBÁ EM 1967
“No dia 15 [de setembro de
1967], às 10,30 horas, um táxi da Cruzeiro do Sul me apanhou na casa de minha
avó Mãe Izolina, levando-me para o aeroporto. Lá chegando, fui almoçar por
gentileza da empresa aérea Cruzeiro do Sul. Almoço simples, mas o peixe
ensopado estava delicioso. Logo depois chegaram minha mãe e minha tia Nêmesis. Tiramos
algumas fotografias de lembrança e fui convidado para o embarque. Mamãe e minha
tia acompanharam-me até à escadinha na porta do avião [o que naquele tempo era
normal]. Escolhi uma poltrona na parte mais de trás [pois os lugares não eram
marcados previamente] e apertei o cinto. Os dois motores a hélices puseram-se a
funcionar e o avião arrastou-se lentamente ao final da pista. Era um humilde
DC-3 com capacidade para 28 passageiros. Nesse voo, segundo expressão do
aeromoço, éramos somente 12 ‘cabeças’. Através da janela tentei localizar minha
mãe e Nêmesis, em vão. Os motores passaram a roncar bem forte, o avião deu uma
corridinha na pista e ergueu-se no ar aos corcovos.
Começava a minha fascinante viagem.
Passando sobre Campo Grande, eu voava para ‘tierras estrañas’, de encontro às
civilizações pré-colombianas!
O avião faria uma escala em Corumbá.
Até Santa Cruz de la Sierra, seu ponto final, seriam 960 quilômetros de voo, o
equivalente a um de Ponta Grossa a Brasília. Os primeiros minutos da viagem
foram verdadeiramente insuportáveis. Nós, as doze ‘cabeças’, estávamos
silenciosos, sentindo os solavancos e as caídas que quase punham nossos
estômagos boca afora. Finalmente o avião estabilizou e o aeromoço surgiu
oferecendo balas e suco de uva. Da janelinha quadrada do DC-3 fotografei as
selvas sem fim do pantanal de Mato Grosso, cheias de lagoas redondas. Avistei o
Rio Paraguai com suas curvas sinuosas. À uma da tarde o avião aterrissou em
Corumbá, após sobrevoá-la. Notei que as casas têm antenas de televisão: elas
recebem imagens de Campo Grande, onde já existe uma emissora. Corumbá é, em
importância, a segunda cidade do Estado de Mato Grosso [Mato Grosso Uno].
Cuiabá, a capital, vem em terceiro lugar.
Desci meio tonto em Corumbá,
sob efeito do Dramin, e fui em direção à alfândega. O calor estava
insuportável. Simplesmente abri a mala e eles nem tocaram em meus pertences.
Como passageiro internacional, passei pela polícia e paguei uma taxa de
NCr$2,00 pelo visto de saída do Brasil.
O VOO
DE CORUMBÁ A SANTA CRUZ DE LA SIERRA
Às 13:45 horas, sufocado de
calor, voltei ao avião. Ao sentar-me, liguei o jato de ar fresco sobre meu
rosto. Apertei o cinto, o avião foi ao final da pista, deu outra corridinha...
e mais uma vez o sofrimento, agora de longa duração: por mais de uma hora, o voo
assemelhava-se a uma carroça correndo a toda velocidade em estrada esburacada.
O ‘sofrimento’ era, evidentemente, o enjôo. O Dramin parecia não surtir efeito
e agarrei o ‘saquinho das indisposições’ que, por sorte, era de plástico e não
de papelão, como usava-se até recentemente, mas não precisei utilizá-lo porque
o voo estabilizou. Só então percebi que há muito já voava sobre território
boliviano. A visão do solo era monótona, muito reduzida pela fumaça das
queimadas e também pelo vidro da janela, cheio de riscos e trincas.
O aeromoço serviu suco de uvas
e seis bolachas salgadas... e foi tudo até chegarmos ao destino. A Cruzeiro do
Sul já operava com jatos em vários pontos do Brasil e um deles era o
maravilhoso Caravelle. Mas naquela região onde eu estava, voavam os DC-3 que
não ofereciam comodidades. O toilette do avião era feio e desajeitado, a pia
suja e o sabonete apenas um toco. Percebi que perdíamos altura. Voltei ao meu
assento, apertei o cinto e logo aterrissávamos em Santa Cruz de la Sierra.
A
CIDADE DE SANTA CRUZ DE LA SIERRA EM 1967
Desci meio tonto e rumei à alfândega, onde precisei preencher extensos formulários. Só abri e fechei a mala, sem que nela mexessem. O aeroporto era péssimo. Tomei um táxi e rumei para a cidade. Ali todos os táxis são [em 1967] Jeeps Toyotas abertos. As ruas estreitas são de terra, sem calçamento, por isso circula-se em meio a nuvens de poeira. Às vezes há água empoçada, formando piscinas de lama entre os dois passeios. Nota-se pobreza nas ruas e o ar desolado da cidade. Toda baixa, os prédios vão até à rua cobrindo as calçadas em arcos que guardam o mais puro estilo espanhol. Sobre os antiquíssimos telhados crescem cactos, cujas sementes são trazidas pelo vento, que dão flores vermelhas e atingem até por volta de um metro de altura.
Fui conhecer Santa Cruz, passando
pelo Lloyd Aéreo Boliviano para confirmar minha passagem no dia seguinte com
destino a La Paz. A Catedral é bonita e deve ser várias vezes centenária. Na
Plaza de Armas as árvores são habitadas por uns macacos pesadões. Nas lojas as
mercadorias expostas são todas importadas porque [em 1967] na Bolívia não há
máquinas. Por exemplo, geladeiras francesas, Lambrettas italianas, fogões
argentinos, máquinas de costura japonesas, tratores americanos, automóveis
ingleses. Comprei um produto americano: Pall Mall!
Fiz amizade com duas garotas
de La Paz, chamadas Martha e Cármen, que estavam no meu hotel. Encontravam-se,
como eu, em trânsito, e no dia seguinte seguiriam para o Rio, na companhia de
uma cunhada.
Dormi muito bem e no dia
seguinte, após vários passeios com as garotas de La Paz, aguardei pelo Jeep
(táxi) que me levaria ao aeroporto de La Paz. Ao meio-dia o calor era de 26° na sombra com
vento. Ao sol, inacreditáveis 40°.
O VOO
DE SANTA CRUZ DE LA SIERRA A LA PAZ
No aeroporto encontrei-me com
outra amiga, também de La Paz, que seguia com os pais para São Paulo. Tomei 7UP
ouvindo ‘La enamoradita de un amigo mío’. Vi o avião que me levaria a La Paz
com escala em Cochabamba: era um grande DC-6B do Lloyd Aéreo Boliviano com 4
hélices, azul, que voaria a 4.200 metros (o DC-3 voava a apenas 2.700 metros).
Às duas da tarde, embarquei. A porta situava-se na metade do avião. Busquei uma
poltrona mais ao fundo, para que a asa não atrapalhasse a visão do panorama. Muito
grande, o avião era todo acarpetado e com as poltronas estofadas em vermelho.
Reconheci um casal americano que voara comigo desde Campo Grande. Atenção:
vocês ouvirão falar deles em outras etapas da viagem. O ambiente era refinado,
as pessoas falavam em inglês e espanhol, o calor era SUFOCANTE e eu tinha terra
na boca. Da janela do avião vi formar-se um rodamoinho de poeira com uns 30
metros de altura, assustador.
O avião foi ao final da pista
e numa corrida galgou o céu. Após 15 minutos de voo eu via apenas leitos secos
de rios e selvas amarelecidas de poeira. Repentinamente os motores passaram a
roncar mais alto; percebi que começávamos a transpor os contrafortes da
Cordilheira dos Andes. Uma das aeromoças serviu-me balas azedinhas. A Cordinheira
começa humilde, mas de repente já voávamos sobre formações impressionantes;
montanhas marrons com estranhas rugosidades que não pareciam reais, mas
desenhadas.
O avião passa sobre o lugarejo de Quillacollo, que era assim em 1967. |
Passamos sobre uma única cidade chamada Quillacollo, que parecia um pequeno desenho com linhas paralelas, perpendiculares e transversais. Às 15:10 horas escalamos em Cochabamba, a segunda cidade mais populosa da Bolívia, pouco mais populosa que Ponta Grossa. O aeroporto estava cheio de gente! Lá fiquei durante 45 minutos, quando convidaram para o reembarque.
Eu já me sentia melhor, pois Cochabamba está situada a 2.557 metros de altitude, enquanto Santa Cruz a apenas 640 metros.
Não fazia calor. Rumando a La Paz, o avião passou a jogar muito. Tudo o
que ofereceram neste percurso, foi chicletes e Pepsi Cola choca. De repente, ao
longe, surgiram picos cobertos por neves eternas: era a Cordilheira dos Andes
propriamente dita. Sua beleza, vista do alto, é indescritível.
Naquele tempo já remoto, 1967,
a simples viagem de avião já podia ser considerada uma grande aventura.
Aterrissamos em El Alto, bairro de La Paz. Acontecimentos fascinantes esperavam-me no belo país”.
Transcrito de meu diário de viagem, destinado sob forma de carta para meu irmão Olímpio, que residia em Nova York com sua esposa Aparecida, com cópias para minha avó paterna Mãe Nina e filhos, para minha avó materna Mãe Izolina e filhos, e para as famílias Batista Rosas, Lange, Maia, Armellini, Vargas de Oliveira, Carvalho e mais uns poucos amigos.
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Que incrivel seu relato repleto de detalhes. A sua narrativa é muito fluída e imagética. Seus diários de viagem deveriam ser publicados em livros. Ajudaria muito quem quer viajar e ter informações importantes. Sempre uma lição de história e geografia. Adorei!
ResponderExcluirQuerida sobrinha, fico muito feliz com o seu comentário. Esse texto, na verdade, eu o escrevi há 55 anos, em 1967, quando eu era ainda um jovem aos 24 anos. Obrigado por ter lido e gostado. Um beijo.
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