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VIAGEM PELA AMÉRICA DO SUL EM 1967
10ª PARTE
A CATEDRAL
E RUÍNAS AO REDOR DE CUSCO
por Francisco Souto Neto
Esta é uma
transcrição do meu diário da viagem que fiz a vários países da América do Sul
em 1967, iniciada na semana em que completei 24 anos de idade. Passados 55
anos, é interessante observar os detalhes de como eram feitas as viagens
naquele tempo e as impressões que os lugares causaram a este então jovem
viajante. A transcrição do meu diário de viagem vai entre aspas, e quando eu
achar necessário intervir no texto, farei isto entre colchetes.
CUSCO
“Na Plaza de Armas de Cusco estão La
Compañia, mais duas outras igrejas (Sagrada Família e da Vitória), a
Universidade e a Catedral. Eu e Rafaelle fomos à Universidade, em cuja fachada
em estilo Renascença, há esculturas de duas cabeças de índios com expressões
severas. Era dia 22 de outubro de 1967. Dali fomos à Catedral de Cusco.
A construção foi iniciada em 1560 e
concluída em 1668. Toda em granito, mescla estilo romano com arte inca
primitiva. A fachada é chata e ser ornatos. No centro há motivos barrocos
esculpidos, mas a decoração dos portais é característica do estilo da severa
Renascença espanhola. Por dentro, a catedral é um grande quadrilátero e contei
doze altares laterais, além do altar principal. Quadros da Escola de Cusco
ornam os lados baixos. A ornamentação do altar é toda sustentada por prata.
Durante um século artistas trabalharam na abóbada. Esse templo foi construído
para os índios, isto é, para que eles se impressionassem com o Deus dos
cristãos. Num dos altares do lado direito de quem entra está a imagem de um
Cristo de cedro enegrecido pelo tempo. É considerado milagroso desde que teria
feito parar o terremoto de 1650.
Em meus prospectos consta que na sacristia da
catedral há uma tela de Van Dyck. Lá fomos recebidos por um padre muito
atencioso, que nos mostrou a tela protegida com barras de ferro, com o motivo
de um Cristo agonizante. As paredes da sacristia estão cobertas de pinturas e
há móveis barrocos magnificamente trabalhados. Então o padre ensaiou seu melhor
sorriso, estufou o peito e apontou a outra parede, dizendo: ‘Este é um Rubens e
aquele é um Miguel Ângelo’. Eu e Rafaelle nos entreolhamos surpresos, mas ambos
não acreditamos em suas autenticidades.
SOBRE O VAN DYCK
[Uma observação que estou
acrescentando no dia 19 de março de 2022, 55 anos após minha viagem pela
América do Sul: Na década de 60 os filmes usados em máquinas fototográficas não
conseguiam resultados em ambientes fechados e sem luz natural. Era preciso usar
flash. O flash era um acessório que se acoplava à máquina, tinha que na hora
rosquear uma lâmpada especializada, que fazia “plôf” e queimava. Para nova
fotografia com flash precisava desrosquear a lâmpada já usada e rosquear outra
lâmpada virgem. Eu não tinha esse acessório volumoso, nem queria. Então não
dava para fotografar dentro de igrejas, sempre escuras. E por esse motivo não
fotografei a pintura de Van Dyck, que ficava atrás de uma grade de ferro para
proteção. Busquei então encontrar a pintura na internet e nada achei. Cheguei a
consultar o mais completo livro que há sobre as obras de arte da Catedral de
Cusco, chamado “Tesoros de la Catedral del Cusco”, e não vi nada sobre o tal
Van Dyck. Neste endereço abaixo, o livro pode ser aberto e folheado em suas
mais de 300 páginas:
https://issuu.com/cooperativabolognesi/docs/cusco
Continuei pesquisando e na Wikipédia
em inglês consegui a seguinte informação (aqui acionei a tradução automática):
Dentro
da sacristia, uma grande pintura escura da crucificação é comumente atribuída ao artista holandês Anthony van Dyck . Alguns
guias locais dizem que é obra do artista espanhol Alonso Cano, do século XVII. [2]
Portanto, aquela tela que eu vi em 1967 seria uma falsa atribuição a
Van Dyck e qualquer referência ao mesmo foi abolida das informações sobre o
acervo de arte da igreja. Sobre os quadros de Rubens e o Michelângelo, então,
nem se fala. Mas essas falsidades são habituais até mesmo nas melhores igrejas
italianas. A quantidade de pedaços de madeira que eles exibem como “pedaços da
cruz de Jesus Cristo” em altares especiais e considerados “milagrosos”, nem dá
para comentar...
E voltemos ao ano de 1967, no momento
em que saímos da catedral de Cusco...]
O padre pediu-nos esmolas para a
Catedral e cada um de nós ofereceu-lhe um sol (a unidade monetária do Peru).
Olhamos aos nossos relógios e vimos que faltavam apenas 15 minutos para nos
encontrarmos com nossos amigos norte-americanos; é que havíamos combinado no
dia anterior com o motorista de táxi que já era nosso conhecido, para levar-nos
a um passeio às ruínas incas nos arredores de Cusco. Sem tempo para o almoço,
entramos num restaurante e saímos comendo sanduíches rumo ao local do encontro,
onde Melinda, a irmã e o cunhado já estavam à nossa espera. Na hora combinada,
surgiu o magnífico Impalla branco que nos levaria à excursão que duraria 5
horas. E foi com o maior conforto, pois nesses carrões modernos vão duas
pessoas na frente com o motorista e três atrás com espaço de sobra porque ali
poderiam ir até quatro pessoas. O preço que me coube pagar foi de... apenas
NCr$5,00!
RUÍNAS AO REDOR DE CUSCO
Em primeiro lugar visitamos o palácio
de Manco Capac, que agora pertence a um milionário excêntrico. Da estrada
avistamos bem ao longe a formidável Fortaleza de Sacsayhuamán, que visitaríamos
mais tarde. De repente, passamos por um caminho inca!
Esses caminhos foram assombrosamente bem feitos na longa história dos incas: do centro da atual Plaza de Armas partiam quatro estradas que iam aos quatro cantos do império. A maior delas ia até Valparaíso no Chile, com extensão de 2.000 quilômetros. Eram superiores às estradas romanas e, pelo estilo grandioso, muitos estudiosos as comparam à obra da colossal Muralha da China. A mais extraordinária dessas estradas partia de Cusco em direção a Quito e era a mais real e a mais larga: atravessa vales fundos, montes nevados, pantanais, rios caudalosos e grandes penhascos, abre caminho entre rochedos, tem parapeitos à margem dos rios e apresenta degraus e plataformas. Os incas não conheciam nem a roda, nem cavalos, de modo que nas estradas a circulação era de pessoas à pé. Por essas estradas existia um sistema de correios muito eficiente e as comunicações de Valparaíso a Quito poderiam demorar apenas seis dias. Acho que nem o correio brasileiro atual seria tão eficiente quando o dos incas. Basta lembrar que minha carta registrada aérea para enviei de Ponta Grossa para o hotel de La Paz pedindo uma reserva, demorou meio mês para chegar ao destino.
Em companhia de Melinda, sentei-me numa das muralhas do forte de Puca-Pucara. Estava tudo absolutamente calmo; não havia sopro de vento. O sol brilhava sobre as montanhas dos Andes e as pedras incaicas. Tudo era estranho e diferente do Brasil. Cada pedra tinha um significado especial e corríamos os dedos sobre elas, como um colecionador examina suas moedas.
Vi uma índia que, sentada ao chão ao lado do filho pequeno, tecia
uma rústica tapeçaria, e fui fotografado por Rafaelle ao lado dela. Em seguida,
ela me disse que queria uma ‘limosna’. ‘O que é uma limosna, Melinda?’. Minha
amiga respondeu com um gesto, rindo: ‘É isto...’ e retirou da bolsa um sol,
dando-o à velha índia. Claro, repeti o gesto...
Há em Puca-Pucara um túnel que dizem
que iria até Cusco. Entramos no apertado túnel apenas alguns metros, um de cada
vez e retornamos imediatamente. Iria até Cusco? Não acredito. Essa fortaleza é
a única construída com pedras pequenas.
Nossa visita seguinte foi a
Tambomachay, a única fonte incaica que ainda jorra água. Há uma lenda que diz
que quem dela beber terá muitos filhos. Todos bebemos daquela água, mas porque
estávamos com sede. Ali ao lado da fonte havia uns dez carrões com turistas os
mais diversos, dentre eles alguns amigos da travessia do Titicaca. Notei a
presença de uma americana típica, gorda e loura, com chapéu cor de abóbora
parecido com um funil enterrado na cabeça, batom escarlate, enormes óculos
pretos com enfeites brancos (moda ‘op’), blusão azul, calça comprida barata e
tênis sujos. Ela era às vezes meio engraçada, mas também bastante antipática.
Melinda mostrou-me uma atriz americana no meio daquele grupo, obscura no Brasil;
seria miss... Marlowe? Marlowe ou algo parecido, já quarentona, sofisticada
e charmosa. Vi os primeiros lhamas que toquei, e lá se foram algumas limosnas
para os indiozinhos.
Depois fomos até às ruínas de Kenko,
outro centro arqueológico a 3.580 metros de altitude. Este templo está
localizado sobre o que hoje se conhece como o Monte Socorro e engloba uma área
de pouco mais de 3.500 metros quadrados. Durante o Império Inca foi um centro
dedicado ao rito religioso e são de particular interesse seu anfiteatro de
forma semi-circular e suas galerias subterrâneas.
Não se conhece o nome original deste
templo. Os conquistadores espanhóis lhe deram o nome de Kenko, palavra quíchua
que significa "labirinto", devido às galerias subterrâneas.
Este monumento foi qualificado como
um anfiteatro, pois tem uma construção semicircular. Na realidade, se ignora a
finalidade desta construção, que pode ter sido utilizada como altar, um
tribunal ou uma tumba. Presume-se que foi um dos santuários mais importantes da
era inca.
Sacsayhuamán é uma enorme fortaleza
construída no alto da montanha que domina Cusco. Sua fachada tem 800
metros de comprimento. Mas a muralha exterior, incluídas sobras e
vanguardeiras, estende-se por mais de três quilômetros. As pedras usadas em sua
construção têm altura de seis metros na base, diminuindo gradativamente de
tamanho, até ao quarto andar do edifício.
Garcilaso de da Vega, escritor do século XVI,
conta em sua obra “Comentários Reales”, que as pedras internas da fortaleza
eram cobertas de ouro e prata e adornadas de baixos-relevos que representavam
plantas e animais. E conclui que Sacsayhuamán superava as sete maravilhas do Mundo
Antigo.
Magnífica e quase inconcebível é a
engenharia dos Incas: as pedras dos edifícios têm muitos ângulos para encaixes
e são sobrepostas sem argamassa. Os incas não conheciam o ferro e, no entanto,
descobriram uma técnica que lhes possibilitou trabalhar as pedras com maestria:
perfeitamente lisas e justapostas, entre uma e outra não há espaço para se
introduzir sequer uma lâmina. Pergunta-se: de onde eles trouxeram as pedras? Num
raio de dezenas de quilômetros não há pedras daquela natureza. E como puderam
transportá-las para o alto das montanhas, sem conhecer a roda, nem a roldana? Se
cavalos para puxá-las eram desconhecidos? São perguntas que nunca terão
resposta: as construções dos incas lá estão e a sua engenharia continuará a
desafiar os milênios e a lógica moderna.
Muito cansado, fui deitar-me muito cedo. Antes de me recolher, avisei aos meus amigos que no dia seguinte não os veria, porque passaria o dia inteiro em viagem de ida e volta a um dos momentos mais expressivos de minhas férias: iria sozinho conhecer a ‘cidade perdida’ de Machu Picchu, distante duas horas de trem desde Cusco. E depois de amanhã viajaria para Lima, capital do Peru. Talvez não voltasse a vê-los. Melinda estava mais bela do que nunca. Trocamos endereços e abraçamo-nos como quem se despede de velhos amigos.
E vida e novas aventuras a seguir...
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