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VIAGEM PELA AMÉRICA DO SUL EM 1967
7ª PARTE
NAVEGANDO NO TITICACA
por Francisco Souto Neto
Esta é uma
transcrição do meu diário da viagem que fiz a vários países da América do Sul
em 1967, iniciada na semana em que completei 24 anos de idade. Passados 55
anos, é interessante observar os detalhes de como eram feitas as viagens
naquele tempo e as impressões que os lugares causaram a este então jovem viajante.
A transcrição do meu diário de viagem vai entre aspas, e quando eu achar
necessário intervir no texto, farei isto entre colchetes.
DE GUAQUI (BOLÍVIA) A PUNO (PERU)
“Eram 17:30 horas quando a litorina
chegou a Guaqui e um navio esperava os passageiros a apenas uns 15 passos dali.
Éramos 17 passageiros que viemos pela litorina.
Na entrada do navio, um oficial
recolheu passaportes, passagens e vistos de entrada no Peru. O navio era bem
melhor do que eu esperava. Desci as escadas, adornadas com metal dourado
brilhante, e cheguei a uma sala com poltronas. Sobre uma das mesas, um bloco com
impressos que todos deveríamos preencher. De ambos os lados, em corredores,
estavam os camarotes. O oficial determinava os camarotes dos
passageiros e informou que eu e o italiano Enrico Rafaelle Longo
compartilharíamos a mesma cabine. Uma chave dourada com um palmo de comprimento
era da porta do camarote. Entramos e achei que aquele espaço era muito parecido
com as cabines dos trens da Estrada de Ferro Sorocabana, que ligava minha
cidade natal de Presidente Venceslau, SP, à capital do estado, só que mais
espaçoso: além das camas (em forma de beliche), tínhamos uma pia, mesa com duas
cadeiras e um sofá, sobre o qual colocamos nossas malas. Sentados à mesa,
preenchemos nossos formulários. A janela da cabine era redonda... como são
sempre as escotilhas. Tudo eu achei pitoresco.
Subi ao convés, mas não encontrei
Melinda, que certamente estaria em seu camarote. Lá fiz amizade com outro
casal, que veio na mesma litorina desde La Paz: Ronald e Susan Lehman. [Sobre
este casal, muito falarei mais tarde]. Ele parece ter uns 19 anos e ela 18.
Susan tem, em tudo, o jeito da Mildred Lange: a maneira de falar, as
expressões, os gestos, e até um pouco dos traços fisionômicos. O casal fala
espanhol bem pausadamente, mas correto.
O navio zarpou às 18:30, hora da
Bolívia. O sol se pôs. Foi uma belíssimo crepúsculo. Fotografei-o. São coisas
que ficarão em minha memória por toda a vida.
Guaqui perdeu-se no horizonte. A
viagem duraria 13 horas. Fomos convidados ao jantar. Descemos ao grande salão
adornado com espelhos de cristal. Sentamo-nos a uma mesa em forma de U e foi
servida uma deliciosa sopa de tomate. Eu estava eufórico, curado do ‘soroche’.
Puxei conversa com meus vizinhos e logo todos confraternizávamos. Em seguida
serviram um delicioso risoto, seguido de filé com arroz. Tomei Crush. A
sobremesa foi compota de pêssego. No final veio o cafezinho, tudo incluso no
preço da passagem.
Como em todo lugar, as pessoas
interessaram-se pelo Brasil, e mostrei-lhes os cartões postais. Somente os
postais (claro que somente os postais e não as fotografias), que foram apreciadíssimos.
Falamos sobre política e Rafaelle contou-me que na Europa Carlos Lacerda é
conhecido como “mata mendigos”, Juscelino
como o mais moderno faraó do mundo, e Adhemar de Barros como um dos
maiores ladrões que já existiram na política. Vejam só que propaganda negativa
para o Brasil, porém infelizmente verdadeira. Rafaelle, que nunca viajou ao
Brasil, repetiu uma frase do Adhemar: ‘...ele disse: eu realmente roubei, mas
também realizei muitas obras’. Que vexame para o Brasil. Outros também falaram
sobre a 'Revolução' de 1964, mas Rafaelle é quem está mais bem informado e disse
que o que houve no Brasil foi na verdade um golpe militar, que é o que de fato aconteceu, e que o atual presidente General Costa e Silva, está se revelando um
tirano. A gente pensa que o que acontece no Brasil fica no nosso quintal, mas
não é assim: o mundo fica sabendo às vezes mais do que nós mesmos,
principalmente quando existe ‘censura oficial’, como está havendo aqui. Quanta
vergonha!
Procurei me distanciar da ampliação
da conversa sobre política. Subi ao convés... e que espetáculo presenciei: era
noite e a Lua acabara de nascer, deixando sobre o Titicaca um rastro de prata
líquida. Nunca me esquecerei daquilo. Mas nada havia de romântico: o termômetro no tombadilho marcava 4°. Entretanto, eu
estava super protegido da cabeça aos pés.
Somente o casal Ronald e Susan, eu,
Rafaelle e Boris aguardamos no convés pela passagem do Esteito de Tiquina, o
que se deu às 23:00 horas bolivianas. Ronald e Susan sabiam da existência dos
meus cadernos e guias de viagem com prospectos e dados coletados por mim, e
perguntavam-me muitas coisas, como se eu já conhecesse o Titicaca e o Peru. E
agora, como já estávamos em águas peruanas, atrasei mais uma hora em meu
relógio: era outro fuso horário que eu acabava de atravessar.
[Uma observação que estou
acrescentando em 2022: na navegação de Guaqui a Puno, eu e os demais
passageiros do navio pensávamos que a fronteira entre Bolívia e Peru fosse no
Estreito de Tiquina, porém somente agora, pesquisando nos mapas do Google,
descobria que a fronteira localiza-se cerca de 50 quilômetros após Tiquina]
O PERU
Desci e fui investigar o navio. Descobri que ele tem 15 camarotes com dois leitos cada, e mais um sofá, o que significa que eventualmente uma cabine pode comportar três passageiros se de uma mesma família. O total de camas, portanto, se incluirmos os sofás, é de 73. Entretanto, há turistas estrangeiros que estão viajando neste navio e não compraram camarotes; assim, não têm camas onde dormir. Onde dormem? Nos sofás das áreas públicas. Acho isso bem estranho.
A embarcação praticamente não jogava e era preciso olhar pela escotilha para
perceber que estávamos navegando. Era um navio confortável. Lá pela década de
30 ou 40 deve ter sido uma embarcação de luxo. Notei, numa placa, que o navio é
inglês. Como será que fizeram um navio desse tamanho chegar àquela altura, isto é, a
mais de 3.800 metros? Desmontado? Será possível?!
O Titicaca é o lago mais alto do
mundo. E é gigantesco: seus 10.369 km² perdem-se no horizonte; ele é oito vezes
maior que o Estado da Guanabara. Às vezes eu divisava luzes de vilas ao lado
esquerdo. Esta é a região mais povoada do planalto andino. Riachos alimentados
pelas geleiras da Cordilheira lançam-se neste verdadeiro mar interior que é o
Titicaca.
O navio sulcava as águas do grande
lago. Como a noite era de lua cheia, eu podia observar as altíssimas montanhas
além das margens mais distantes. Por ali creio que haja vulcões adormecidos. A
Lua era como um brilhante num oceano negro... noite inesquecível.
Fui deitar-me somente às duas horas,
não porque não tivesse sono, mas porque a travessia do Titicaca era uma nova
experiência e eu queria vivê-la ao máximo. O Rafaelle estava dormindo no leito
de cima. Foi muito gentil, sendo ele o mais velho, por deixar o leito baixo para
mim. O camareiro deixara meu leito pronto e percebi que a roupa de cama
tinha perfume de sabão: era bem limpa. Ao deitar-me, senti como se me
encaixasse num espaço oco côncavo: o colchão não era reto, e havia em seu centro uma
reentrância do meu tamanho. Era a memória que o colchão tinha de milhares de
passageiros anteriores que dormiram ali, afundando-se no referido colchão, e sem querer moldando-o com seus corpos. Mesmo assim,
tão cansado estava, que me parece que dormi instantaneamente.
Meu subconsciente acordou-me às 5 da
manhã, pois eu queria ver a alvorada. Rafaelle roncava. Subi ao convés e fui à
popa. Vi quando o Sol surgiu das águas do Titicaca; foi uma alvorada de grande beleza,
apresentando maravilhosos jogos de luzes e cores.
Logo depois começaram a subir os
turistas e conversávamos como se fôssemos velhos amigos. Lembrei-me de que
durante a noite acordei algumas vezes com braços e pernas dormentes. Igual
fenômeno ocorrera-me muitas vezes em La Paz. Explicação: devido à altitude, o
coração não tem força suficiente para bombar o sangue... e a circulação
diminui. Eu precisava fazer massagens nas pernas, o que não era fácil tendo
ambas as mãos dormentes.
Fiquei observando que Puno se aproximava. Fotografei algumas totoras, que são as embarcações de junco feitas pelos indígenas, caracerísticas do Titicaca. Descemos para o desjejum. Sentei-me ao lado de uma senhora elegante, de cabelos brancos que viajava com uma filha balzaquiana. Essa senhora lembrava vagamente a minha avó Mãe Nina. Mãe e filha eram norte-americanas. Voltamos ao convés, portando nossas bagagens. Nas margens havia lhamas, bonitos animais, que fotografei.
Eram 8
horas quando a nossa embarcação atracou no porto de Puno. Fomos convidados a descer mais uma vez ao grande
salão do navio, para as formalidades do passaporte. Éramos 2 bolivianos, 1
italiano, 11 americanos, 2 alemães e eu, o único brasileiro. Fomos chamados um
por um para a entrega dos passaportes. O comissário de polícia disse meu nome
com pronúncia tão carregada, que não compreendi. Melinda deu-me um cutucão:
‘Vá; é você’.
Após visados os passaportes,
desembarcamos e fomos à aduana. Se a “cerimônia” dos vistos nos passaportes foi
tão formal, a aduana – para compensar – foi informalíssima. Ao lado da aduana
estava o trem que nos levaria a Cusco.
Uma nova experiência vai começar.
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