domingo, 27 de março de 2022

VIAGEM PELA AMÉRICA DO SUL EM 1967 - 16ª PARTE - NAS NEVES DE FARELLONES, CHILE por Francisco Souto Neto.

 

 

Francisco Souto Neto nas neves de Farellones

  

Comendador Francisco Souto Neto

 

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VIAGEM PELA AMÉRICA DO SUL EM 1967

 

16ª PARTE


 NAS NEVES DE FARELLONES, CHILE

 

por  Francisco Souto Neto

 

Esta é uma transcrição do meu diário da viagem que fiz a vários países da América do Sul em 1967, iniciada na semana em que completei 24 anos de idade. Passados 55 anos, é interessante observar os detalhes de como eram feitas as viagens naquele tempo e as impressões que os lugares causaram a este então jovem viajante. A transcrição do meu diário de viagem vai entre aspas, e quando eu achar necessário intervir no texto, farei isto entre colchetes.

 

FARELLONES

 

“Pedi à portaria do Hotel Cervantes, em Santiago, que me chamasse às 6:45 horas. Tomei banho, fui à sala do café da manhã e, bem agasalhado, parti num táxi rumo à Praça Itália, onde eu deveria procurar pelo Sr. Jorge Grez, cujo ônibus levaria um grupo – eu inclusive – a Farellones. O motorista do táxi disse-me: “se vai a Farellones, procure pelo Señor Grez”. E, bem a propósito, quando no dia anterior, em Viña del Mar, eu comentei com Don Castro que iria a Farellones, ele me disse: “Ah, neste caso irás com Jorge Grez, meu amigo. Encontrando-o, diga-lhe que envio um abraço”. Ufa, assim tão bem recomendado e com “todo mundo” conhecendo o Sr. Grez, ele deve ser muito conhecido em Santiago.

Logo conheci o Sr. Grez, gordinho, de meia idade, amabilíssimo. É um visível praticante de ski e de montanhismo. Embarcamos em seu ônibus e ele comentou que nós, seus passageiros, éramos chilenos, holandeses, alemães, americanos, britânicos, argentinos e “um brasileiro” – eu, naturalmente! Disse-nos que faltava uma passageira. Quase todos usavam pesadas botas, luvas apropriadas, bonitos blusões. Ao meu lado sentou-se um velho senhor, fumando um cachimbo à Sherlock Holmes. O fumo do cachimbo tem delicioso aroma de... chocolates. Dá vontade de comer a fumaça.

Todos sentados, havia um clima de silenciosa alegria no ônibus. O Sr. Grez olhou para seus passageiros com visível satisfação e ele mesmo é quem dirige o ônibus. Partimos às 8:10 horas e fomos por um setor de Santiago que eu não conhecia. O senhor idoso ao meu lado começou a conversar e me perguntou se eu era americano. Será que meu espanhol está tão ruim assim?!

Às 8:20 horas o ônibus deu uma súbita brecada! A passageira de um táxi passara ao nosso lado acenando um lenço para o ônibus e estacionou à nossa frente. Era a passageira que faltava! O velho Sr. Grez, muito ágil, pulou do ônibus com a lista de passageiros e logo voltou todo sorridente com uma senhora. Ela estava ainda mais sorridente do que ele.

A saída de Santiago é por uma avenida muito bonita, que lembra a Av. Brasil de São Paulo, onde morou a minha tia Mariinha, irmã de meu pai.

A certa altura o Sr. Grez parou o ônibus, desceu e logo retornou com um enorme pacote de balinhas, que distribuiu entre todos nós.

Às 8:45 horas, ainda nos arredores de Santiago, a Cordilheira começa a engolir o ônibus. De ambos os lados do veículo, lá no alto das montanhas, vejo as neves eternas. Meu vizinho idoso, impassível, lê um livro.

Estou tão habituado ao cinto de dinheiro do Sr. João Vargas, que Dª Argentina fez questão de me emprestar, que sem ele eu não seria eu.

Passamos por camping à beira da estrada. Após uma ponte, o caminho começa a fazer zigue-zague como no caminho para o alto de Machu Picchu. Quanto mais subimos em direção a Farellones, mais curvilínea torna-se a estrada.

Às 10 horas, o belíssimo espetáculo de estarmos em plenos Andes. Os picos das montanhas parecem tocar o céu. O mundo que conhecemos ficou muito abaixo.

Logo depois vimo-nos em Farellones, a 2.300 metros de altitude. As casas aqui construídas usam e abusam da imaginação. Vi um refúgio rústico com um condor empalhado acima da porta.

Às 10:30 horas o ônibus ainda subia rumo às neves eternas. Alguns passageiros, dentre os quais meu vizinho britânico, tinham descido em pontos anteriores, que são outras pistas de ski.

Chegamos ao ponto mais alto, onde uma construção circular é um restaurante com uma grande lareira acesa no centro, um local bem próximo às “cadeirinhas” (skilift) que levam os andinistas para o ponto mais alto, de onde descem esquiando.

Eu estava conversando com uma senhora americana, quando se acercou de nós Eduardo Rosales Stuardo, que viajara no mesmo ônibus desde Santiago. Ele e eu éramos os únicos que não portávamos skis e ele passou a ser meu companheiro durante grande parte do dia. Eduardo é um estudante natural de Santiago, que subiu a Farellones unicamente pelo prazer de respirar ar puro e porque gosta da presença da neve. Então fomos andar. Toquei a neve, comi, pisei, andei e afundei. Tirei foto fingindo comê-la. Caminhamos longamente. Maior parte do percurso a neve estava solidificada, mas às vezes ela cedia e eu sumia até aos joelhos. Eduardo divertia-se e ria muito, certamente por ver um caipira encantado com algo que para ele é a coisa mais comum do mundo: a neve. Fui ver as pessoas esquiando. Uma simpática senhora americana deu-me uma rápida “aula” de ski. Eu deslizei alguns centímetros e caí de traseiro. Na neve, tudo é divertido.

Eis-me nas neves de uma pista de ski.

As “cadeirinhas" (skilift) levam pessoas ao alto da montanha, para que voltem esquiando. O homem à direita é o maquinista do skilift.

Este é o único passageiro (Eduardo Rosales Stuardo) que, assim como eu, estava sem skis (ou esquis). Então ficamos andando e fotografando na neve.

Às minhas costa, as montanhas andinas.

 
Que tal experimentar um pedação de neve? ...de brincadeira.


Casa típica de montanha nevada.

Fotografo Eduardo na neve.

Meus pés afundando-se na neve.

O skilift.

A construção circular, à direita, o “refúgio”, é um restaurante com uma grande lareira central.

Eu aprendendo a esquiar...

Minha “professora de esqui”...

Começou forte ventania polar. Meu sobretudo bem abotoado mostra a evidência do vento.

Eu e o señor Jorge Grez, dono da empresa de ônibus, éramos quase derrubados pela violência do vento.

O skilift parou de funcionar, e os turistas que ficaram presos no alto da montanha foram socorridos por um trator.

Deixando a pista de esqui e a tempestade no alto da montanhas, encontramos mais abaixo a vila  de inverno de Farellones.

Meu último anoitecer em Santiago. Na manhã seguinte eu voaria de Santiago do Chile a Buenos Aires na Argentina.

O avião da Braniff decola e eu vejo Santiago, muito abaixo, pela última vez.

Transpondo a Cordilheira dos Andes, o jato sobrevoa os Pampas argentinos.

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Andando pelas proximidades das pistas e entre imaginosas casas de milionários, ficamos até à uma da tarde. Meu almoço e de Eduardo foi um curioso e original sanduíche, receita local, com Crush. Depois tomei uma cadeirinha e subi até ao ponto mais alto da pista de ski.  A vista era muito bonita, mas... de repente senti um súbito vento muito forte. Não foi uma rajada, mas algo forte e contínuo. Percebi os andinistas meio sobressaltados e olhando para cima. Tratei de pegar uma cadeirinha para descer. O vento aumentava e a cadeirinha parecia que ia despencar comigo no abismo. Pelas pistas, os esquiadores desciam fazendo graciosas curvas, mas com visível pressa.

Deixando o skilift, dirigi-me ao ônibus do Sr. Grez. Sua partida de volta a Santiago seria às cinco da tarde. Eram ainda pouco mais das 14 horas, mas todos estavam procurando abrigo dentro dos veículos. O vento tornou-se furioso e eu quase não podia andar normalmente. Era gelado e constante. Queimava-me o rosto. Surgiu o Sr. Grez esquiando, com o rosto roxo de frio. Tirei uma foto com ele, em frente ao seu ônibus, para guardar de lembrança. Ele ficou grato e disse-me: “Eres mui amable”. Os cumes das montanhas desapareceram numa grande nuvem branca. Entrei no ônibus, que era brutalmente sacudido pelo vento. Eduardo Stuardo explicou-me: “Este é o início de uma grande tempestade”.

As “cadeirinhas” pararam todas elas. Mas faltavam dois passageiros, e eram do nosso ônibus. Um trator partiu em direção ao alto da montanha para resgatar as duas pessoas extraviadas.  Durante meia hora o vento uivou e parecia querer levantar o ônibus. Uma senhora disse que esquecera algo no restaurante e saiu do veículo. O Sr. Grez prontamente a socorreu, pois o vento quase a derrubava. Ele agarrou o braço da senhora e foram em direção ao restaurante. Rapidamente voltaram ao mesmo tempo que o trator também regressava com os dois “sobreviventes” encaracolados.

Partimos de regresso a Santiago, parando num refúgio, onde estava o meu original companheiro de banco, o velho inglês do cachimbo à Sherlock Holmes.

Nesse instante começou a nevar. O ônibus desceu apressadamente, deixando Farellones e sua furiosa tempestade de neve para trás.

Para baixo, para baixo. Cessa o vento, passam as neves e o frio. Em baixo é melhor... Eu e Eduardo trocamos endereços e cada um seguiu seu caminho.

À noite, cansado, tomei um bom banho e arrumei minha mala. Na manhã seguinte eu teria que estar no aeroporto para tomar um jato da Braniff com destino a... Buenos Aires, onde eu teria novos mundos a descobrir.

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O AUTOR DO TEXTO ACIMA EM 2022, AOS 78 ANOS


Francisco Souto Neto em março de 2022, em casa, 55 anos após a viagem a Farellones.

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