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VIAGEM PELA AMÉRICA DO SUL EM 1967
16ª PARTE
NAS NEVES DE FARELLONES, CHILE
por
Francisco Souto Neto
Esta é uma transcrição do meu diário da viagem que fiz a vários países
da América do Sul em 1967, iniciada na semana em que completei 24 anos de
idade. Passados 55 anos, é interessante observar os detalhes de como eram
feitas as viagens naquele tempo e as impressões que os lugares causaram a este
então jovem viajante. A transcrição do meu diário de viagem vai entre aspas, e
quando eu achar necessário intervir no texto, farei isto entre colchetes.
FARELLONES
“Pedi à portaria do Hotel Cervantes, em Santiago, que me chamasse às
6:45 horas. Tomei banho, fui à sala do café da manhã e, bem agasalhado, parti num táxi rumo à Praça Itália, onde eu deveria
procurar pelo Sr. Jorge Grez, cujo ônibus levaria um grupo – eu inclusive – a
Farellones. O motorista do táxi disse-me: “se vai a Farellones, procure pelo
Señor Grez”. E, bem a propósito, quando no dia anterior, em Viña del Mar, eu
comentei com Don Castro que iria a Farellones, ele me disse: “Ah, neste caso
irás com Jorge Grez, meu amigo. Encontrando-o, diga-lhe que envio um abraço”.
Ufa, assim tão bem recomendado e com “todo mundo” conhecendo o Sr. Grez, ele
deve ser muito conhecido em Santiago.
Logo conheci o Sr. Grez, gordinho, de
meia idade, amabilíssimo. É um visível praticante de ski e de montanhismo.
Embarcamos em seu ônibus e ele comentou que nós, seus passageiros, éramos chilenos, holandeses, alemães, americanos, britânicos, argentinos e “um brasileiro” – eu,
naturalmente! Disse-nos que faltava uma passageira. Quase todos usavam pesadas
botas, luvas apropriadas, bonitos blusões. Ao meu lado sentou-se um velho
senhor, fumando um cachimbo à Sherlock Holmes. O fumo do cachimbo tem delicioso
aroma de... chocolates. Dá vontade de comer a fumaça.
Todos sentados, havia um clima de
silenciosa alegria no ônibus. O Sr. Grez olhou para seus passageiros com
visível satisfação e ele mesmo é quem dirige o ônibus. Partimos às 8:10 horas e
fomos por um setor de Santiago que eu não conhecia. O senhor idoso ao meu lado
começou a conversar e me perguntou se eu era americano. Será que meu espanhol
está tão ruim assim?!
Às 8:20 horas o ônibus deu uma súbita
brecada! A passageira de um táxi passara ao nosso lado acenando um lenço para o
ônibus e estacionou à nossa frente. Era a passageira que faltava! O velho Sr.
Grez, muito ágil, pulou do ônibus com a lista de passageiros e logo voltou todo
sorridente com uma senhora. Ela estava ainda mais sorridente do que ele.
A saída de Santiago é por uma avenida
muito bonita, que lembra a Av. Brasil de São Paulo, onde morou a minha tia
Mariinha, irmã de meu pai.
A certa altura o Sr. Grez parou o
ônibus, desceu e logo retornou com um enorme pacote de balinhas, que distribuiu
entre todos nós.
Às 8:45 horas, ainda nos arredores de
Santiago, a Cordilheira começa a engolir o ônibus. De ambos os lados do
veículo, lá no alto das montanhas, vejo as neves eternas. Meu vizinho idoso, impassível, lê
um livro.
Estou tão habituado ao cinto de
dinheiro do Sr. João Vargas, que Dª Argentina fez questão de me emprestar, que
sem ele eu não seria eu.
Passamos por camping à beira da
estrada. Após uma ponte, o caminho começa a fazer zigue-zague como no caminho
para o alto de Machu Picchu. Quanto mais subimos em direção a Farellones, mais
curvilínea torna-se a estrada.
Às 10 horas, o belíssimo espetáculo
de estarmos em plenos Andes. Os picos das montanhas parecem tocar o céu. O
mundo que conhecemos ficou muito abaixo.
Logo depois vimo-nos em Farellones, a
2.300 metros de altitude. As casas aqui construídas usam e abusam da
imaginação. Vi um refúgio rústico com um condor empalhado acima da porta.
Às 10:30 horas o ônibus ainda subia
rumo às neves eternas. Alguns passageiros, dentre os quais meu vizinho britânico,
tinham descido em pontos anteriores, que são outras pistas de ski.
Chegamos ao ponto mais alto, onde uma
construção circular é um restaurante com uma grande lareira acesa no centro,
um local bem próximo às “cadeirinhas” (skilift) que levam os andinistas para o
ponto mais alto, de onde descem esquiando.
Eu estava conversando com uma senhora
americana, quando se acercou de nós Eduardo Rosales Stuardo, que viajara no
mesmo ônibus desde Santiago. Ele e eu éramos os únicos que não portávamos skis
e ele passou a ser meu companheiro durante grande parte do dia. Eduardo é um
estudante natural de Santiago, que subiu a Farellones unicamente pelo prazer de
respirar ar puro e porque gosta da presença da neve. Então fomos andar. Toquei
a neve, comi, pisei, andei e afundei. Tirei foto fingindo comê-la. Caminhamos
longamente. Maior parte do percurso a neve estava solidificada, mas às vezes
ela cedia e eu sumia até aos joelhos. Eduardo divertia-se e ria muito,
certamente por ver um caipira encantado com algo que para ele é a coisa mais
comum do mundo: a neve. Fui ver as pessoas esquiando. Uma simpática senhora
americana deu-me uma rápida “aula” de ski. Eu deslizei alguns centímetros e caí
de traseiro. Na neve, tudo é divertido.
Às minhas costa, as montanhas andinas.
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Andando pelas proximidades das pistas
e entre imaginosas casas de milionários, ficamos até à uma da tarde. Meu almoço
e de Eduardo foi um curioso e original sanduíche, receita local, com Crush. Depois
tomei uma cadeirinha e subi até ao ponto mais alto da pista de ski. A vista era muito bonita, mas... de repente
senti um súbito vento muito forte. Não foi uma rajada, mas algo forte e
contínuo. Percebi os andinistas meio sobressaltados e olhando para cima. Tratei
de pegar uma cadeirinha para descer. O vento aumentava e a cadeirinha parecia
que ia despencar comigo no abismo. Pelas pistas, os esquiadores desciam fazendo
graciosas curvas, mas com visível pressa.
Deixando o skilift, dirigi-me ao
ônibus do Sr. Grez. Sua partida de volta a Santiago seria às cinco da tarde.
Eram ainda pouco mais das 14 horas, mas todos estavam procurando abrigo dentro
dos veículos. O vento tornou-se furioso e eu quase não podia andar normalmente.
Era gelado e constante. Queimava-me o rosto. Surgiu o Sr. Grez esquiando, com o
rosto roxo de frio. Tirei uma foto com ele, em frente ao seu ônibus, para guardar
de lembrança. Ele ficou grato e disse-me: “Eres mui amable”. Os cumes das
montanhas desapareceram numa grande nuvem branca. Entrei no ônibus, que era
brutalmente sacudido pelo vento. Eduardo Stuardo explicou-me: “Este é o início
de uma grande tempestade”.
As “cadeirinhas” pararam todas elas.
Mas faltavam dois passageiros, e eram do nosso ônibus. Um trator partiu em
direção ao alto da montanha para resgatar as duas pessoas extraviadas. Durante meia hora o vento uivou e parecia
querer levantar o ônibus. Uma senhora disse que esquecera algo no restaurante e
saiu do veículo. O Sr. Grez prontamente a socorreu, pois o vento quase a
derrubava. Ele agarrou o braço da senhora e foram em direção ao restaurante.
Rapidamente voltaram ao mesmo tempo que o trator também regressava com os dois
“sobreviventes” encaracolados.
Partimos de regresso a Santiago,
parando num refúgio, onde estava o meu original companheiro de banco, o velho inglês
do cachimbo à Sherlock Holmes.
Nesse instante começou a nevar. O
ônibus desceu apressadamente, deixando Farellones e sua furiosa tempestade de
neve para trás.
Para baixo, para baixo. Cessa o
vento, passam as neves e o frio. Em baixo é melhor... Eu e Eduardo trocamos
endereços e cada um seguiu seu caminho.
À noite, cansado, tomei um bom banho
e arrumei minha mala. Na manhã seguinte eu teria que estar no aeroporto para
tomar um jato da Braniff com destino a... Buenos Aires, onde eu teria novos
mundos a descobrir.
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O AUTOR DO TEXTO ACIMA EM 2022, AOS 78 ANOS
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