sábado, 19 de março de 2022

VIAGEM PELA AMÉRICA DO SUL EM 1967 - 11ª PARTE - MACHU PICCHU por Francisco Souto Neto.

 

Francisco Souto Neto em Machu Picchu (1965)

  

Comendador Francisco Souto Neto

 

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VIAGEM PELA AMÉRICA DO SUL EM 1967

 

11ª PARTE


A CIDADE SAGRADA DE MACHU PICCHU

por  Francisco Souto Neto

 

Esta é uma transcrição do meu diário da viagem que fiz a vários países da América do Sul em 1967, iniciada na semana em que completei 24 anos de idade. Passados 55 anos, é interessante observar os detalhes de como eram feitas as viagens naquele tempo e as impressões que os lugares causaram a este então jovem viajante. A transcrição do meu diário de viagem vai entre aspas, e quando eu achar necessário intervir no texto, farei isto entre colchetes.

 

CUSCO PELA MANHÃ E A VIAGEM PARA MACHU PICCHU

 

“Pela manhã, bem cedo, andei pelas cercanias do Hotel San Agustín para fazer algumas fotos antes da hora de embarcar de trem para Machu Picchu.

A entrada de uma casa opulenta.


No correio de Cusco: a caixa de coleta.


A Catedral iluminada pelo sol da manhã.

Ainda deu tempo para um papo com duas "chicas" bolivianas, irmãs, que conheci no dia anterior, que estavam hospedadas no mesmo Hotel San Agostín.

 

A DESCOBERTA DE MACHU PICCHU EM 1911

 

Na época da conquista, os espanhóis ouviram falar a respeito de uma Cidade Sagrada, mas nunca a descobriram. Seria o lugar onde viveriam as Virgens do Deus Sol. Passaram-se os séculos. Em 1911, Hiram Bingham, professor da Universidade de Yale, organizou uma expedição com o fim de descobrir a sepultura do último Inca. Não a encontrou mas, em compensação, fez uma descoberta arqueológica importantíssima. Tendo ele ouvido os nativos falaram a respeito de ruínas “do outro lado das montanhas”, e ciente da existência de uma lenda a respeito de fabulosa cidade perdida, tão extraordinária quanto à de Eldorado, o arqueólogo não teve dúvidas: aventurou-se pela parte mais perigosa dos Andes, montado em burrico. Diz ele no livro ‘A Cidade Perdida dos Incas’: ‘Aqueles picos coroados de neves, tentaram-me. Sentia uma compulsão a dizer-me: Vai e olha atrás da crista dos montes... Alguma coisa perdida atrás da crista dos montes... Perdida e à tua espera! Vai!’. E o que Bingham viu, a revista Seleções do Reader’s Digest classifica como ‘um espetáculo hoje comparável, em magnitude, às Pirâmides do Egito e ao Grand Canyon juntos.

A VIAGEM DE TREM

 Atualmente faz-se a viagem a Machu Picchu em modernos trens. A ferrovia parte de Cuzco. Em duas horas eleva-se a quase 4000 metros para depois, 1800 metros abaixo, mergulhar na garganta sombria que imobilizou os homens de Pizarro. Viaja-se então pelo vale sagrado do Rio Urubamba até chega-se a um penhasco final, com 700 metros de altura, onde deixa-se o trem e parte-se de micro-ônibus por uma estrada de 8 quilômetros, perigosíssima, íngreme, cheia de curvas fechadas. O motorista vai cantando para desviar a atenção dos turistas dos precipícios. A estrada termina no Hotel de las Ruínas, construído ao lado da Cidade Sagrada.

Embarco no trem para Machu Picchu, a Cidade Sagrada do Deus Sol. 


Crianças numa das paradas do trem.


Paisagens que se descortinam da janela do trem.


Paisagens que se descortinam da janela do trem, que avança pelo Vale Sagrado do Rio Urubamba.


Os vagões do trem têm janelas no teto para que o passageiro possa admirar as montanhas.


À minha frente vai aquela linda loura que Melinda tinha me dito tratar-se de uma atriz de Hollywood. Não me lembro do nome dela, que pena. O sobrenome seria algo parecido com Marlowe.


Uma ponte sobre o Rio Urubamba.

Desembarcando do trem e subindo a perigosa Estrada Hiram Bingham de ônibus, quem diria, encontrei o casal Ronald e Susan Lehman, que conheci na travessia do Lago Titicaca, entre Bolívia e Peru. E ficamos juntos passeando por Machu Picchu.

Por casualidade encontrei-me com o casal Ronald e Susan Lehman, que por coincidência viajara na mesma litorina comigo de La Paz a Guaqui, e também juntos fizemos a travessia noturna do Lago Titicaca entre Guaqui e Puno, e depois tomamos o mesmo trem entre Puno e Cusco. A partir daí, não mais vi esse simpático casal, até nos encontrarmos no desembarque do ônibus que nos levou do ponto final do trem no Rio Urubamba até ao alto de Machu Picchu.

Os Filhos do Sol pretenderam construir uma cidade no topo do mundo... e o conseguiram. A primeira impressão que se tem de Machu Pucchu, com sua grama muito verde semeada de flores vermelhas, e dos edifícios que se alinham pelo flanco da montanha, é de enorme encantamento.

Machu Picchu não está em ruínas. Ela é toda uma cidade intacta, à qual faltam somente os habitantes. O grande número de casas e a imponência dos palácios indicam que se tratava de uma cidade, mas a sua situação na parte mais inacessível dos Andes, cercada de paredões verticais, e também pelo isolamento do império, parece indicar que Machu Picchu era a Cidade Santa, residência das Virgens do Deus Sol , equivalentes às vestais gregas, o que também se supõe pelos esqueletos lá encontrados, somente de mulheres.

As praças sagradas são muito amplas, e os templos de esmerada construção. Na parte mais alta está o relógio solar denominado Intihuatana. As principais edificações, como o Palácio da Sacerdotisa, o Templo do Sol, o Tambo-Tocco, o conjunto das Rochas Sagradas, são em granito branco e polido. A cidade é toda circundada por gigantescos degraus destinados ao cultivo.

Do alto das montanhas contemplei com respeito as pedras incaicas, testemunhas de um glorioso passado que se perde na noite dos tempos.

A primeira visão de Machu Picchu.


Eu entrando em Machu Picchu.


O casal Lehman entrando em Machu Picchu

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Subindo as escadarias de Machu Picchu em direção ao observatório incaico.


Muito, muito abaixo, eu fotografo o Vale Sagrado do Rio Urubamba e o traçado da estrada de ferro.


Nas alturas de Machu Picchu.


Francisco Souto Neto e Susan Lehman.


Ao meu lado o observatório na parte mais alta da cidade.


Nas alturas de Machu Picchu.


Nas alturas de Machu Picchu.


O casal Lehman fazendo piquenique.


Francisco Souto Neto nas alturas de Machu Picchu.


Souto Neto e Ronald Lehman sobre a Cidade Sagrada.


As vivendas superiores.


Observar ao longe os degraus do cultivo. Neste momento começou um chuvisco que demorou apenas uns 5 minutos.


Eu e Susan observando os abismos.


O lugar mais sagrado de Machu Picchu: o interior do Palácio da Sacerdotisa.


Cometo uma profanação: ponho-me na janela do quarto da Sacerdotisa. No tempo do Império Inca, este ato talvez me custasse a vida.


Segundo a lenda, foi do Templo das Três Janelas que partiu o primeiro Inca para fundar o império.


Sento-me também em uma das Três Janelas.


O Templo do Sol. Às nossas costas (eu e Ronald) está o altar dos sacrifícios.


O homem senta-se justamente no Intihuatana, o relógio solar inca.

Porta de uma vivenda.

Voltamos ao Palácio da Sacerdotisa.

Estou sob o Palácio da Sacerdotisa.Os nichos que estão às minhas costas abrigavam múmias de Sacerdotisas e antigos Sacerdotes do Sol.


Deixando Machu Picchu lanço os olhos pela última vez às ruínas e dou um silencioso adiós à Cidade Santa dos Incas.


Abaixo, fotos com a câmera de Ronald Lehman:





As quatro fotografias acima, de formato quadrado, foram-me enviadas por correio pelo Ronald (fotos tiradas com a câmera dele). A última delas mostra o Rio Urubamba, no fundo do Vale Sagrado, que é onde está a estação de trem, lugar onde os turistas descem e tomam o micro ônibus que os leva através da tortuosa Estrada Hiram Binghan até ao topo de Machu Picchu. 

Após excursionarmos pela cidade, visitando o famoso Templo das Três Janelas, o Palácio da Sacerdotisa e o relógio solar denominado Intihuatana, buscamos com os olhos o cume da montanha vizinha. Devido ao oxigênio rarefeito daquela altitude, cansávamo-nos com extrema facilidade. Susan e Ronald levavam comestíveis americanos, incluindo água potável norte-americana. E eu, chocolates e bolachas. Assim, fizemos piquenique ao chegarmos a um ponto alto da montanha, tendo sob nossos pés toda a cidade Sagrada, fato que me causou profunda impressão. No meu regresso eu contaria muita coisa, mas não conseguiria descrever como verdadeiramente era a sensação de abraçar Machu Picchu com os olhos. Foi como se pairássemos fluídicos sobre um mundo irreal. E naquele momento, levado pela inspiração, compus um soneto em versos de doze sílabas poéticas, que denominei...

 

         Alturas da Cidade Sagrada

 

Soneto de Francisco Souto Neto

 

Além dos limites das nevadas montanhas

Entre vulcões o rio sagrado serpenteia

E atinge da profunda floresta as entranhas

De misterioso e lendário esplendor tão cheia.

 

Da cidadela sagrada eu galgo as alturas

Para ser transportado ao coração da História.

Mas tudo é paradoxal e sinto tonturas

Do presente obscuro e passado de glória.

 

São milenares vestígios de obras tão grandes...

Tierra de los Incas y tierra de temblores

Com tiaras de mármore na crista dos Andes.

 

São ruínas duma terra outrora venerada...

Tierra de los Incas y tierra de esplendores...

Machu Picchu! Alturas da Cidade Sagrada!

 

 

[No começo da década de 50 meu pai descobriu discos long-play da peruana Yma Sumac, descendente dos Incas. Ele foi comprando todos os discos que eram lançados no Brasil. Ele e minha mãe tornaram-se fãs, e também nós, os filhos. Esses discos de 33 rpm tenho-os até hoje. Lá pelo final do século XX os discos foram relançados em CD e foram surgindo outros, até então inéditos no Brasil.  

 

YMA SUMAC

 

Yma Sumac (1922-2008) foi quem impulsionou meu interesse pelo Peru. Acompanhei a trajetória da grande cantora até à sua morte.



Yma Sumac no disco Inca Taqui

Um dos seus maiores sucessos é Chuncho (Vozes da Floresta), no disco Inca Taqui, na qual ela imita os sons de animais e pássaros da floresta. Tenho o disco abaixo em long-play e em CD. Vale a pena clicar para ouvir:

https://www.youtube.com/watch?v=JgoA12ytiko

Em 1960 Yma Sumac apresentou-se em Moscou, acompanhada ao violão pelo marido Moisés Vivanco, e aqui abaixo está a sua admirável interpretação de Chuncho sem orquestra, gravada no palco em som e imagem. Vale também para ver a sua poderosa apresentação e as expressões faciais enquanto se move em cena!]

https://www.youtube.com/watch?v=cHCro9NYccs

 

ADEUS A CUSCO

 

Após algum tempo juntos, despedi-me do casal Lehman. Trocamos endereços para eu enviar-lhes as fotos que tirei, e para eles enviarem-me as fotos que tiraram. Não só achei melhor deixá-los à vontade, mas também porque eu precisava tomar o próximo trem de volta a Cusco porque no dia seguinte eu tinha passagem aérea para Lima, a capital do país.

Eu não imaginava que no dia seguinte eu encontraria os Lehman... no aeroporto!

De volta ao meu hotel de Cusco, deitei-me muito cedo porque estava cansadíssimo. Dormi muito bem e na manhã seguinte tive ainda várias atividades antes de ir para o aeroporto.

De volta a Cusco, uma índia com o filho às costas.


Lá vem o exército de Cusco.


A chefatura de polícia.


Uma procissão à Virgem de la Merced.


A Igreja de la Merced. Ao fundo, a americana típica antipática que conheci em Tambomachay e que revi em Machu Picchu, que acaba de sair de uma galeria de arte com uma tela que certamente comprou.


Por acaso encontro-me com Ronald e Susan Lehman no aeroporto. Eles viajariam para Lima pela Faucett, uma moderna empresa aérea que opera com quadrimotores à hélices. Eu embarcaria meia hora depois num avião menor, da LANSA, que opera em “prop-jets”, uns modernos aviões que são “turbo-hélice”. Ambos conseguem ultrapassar os Andes no voo para Lima, o que não é possível para os aviões comuns no Brasil e no mundo, do tipo DC-3 (bimotores que voam muito baixo).


Nesta foto, vi Ronald e Susan embarcarem no quadrimotor à direita, da Faucett. O menor, à esquerda, é o “prop-jet” que me levará a Lima, no qual embarcarei dentro de 30 minutos.


Começa o voo para Lima, e eu tiro uma foto quando passamos sobre Cusco.

 

O VOO HORRIPILANTE PARA LIMA

 

[Eu estava animadíssimo para o voo, porque até então, desde criança eu viajara num único tipo de avião: nos DC-3, que eram aeronaves para apenas 28 passageiros e com duas hélices. Eram aviões antigos que voavam muito baixo e as viagens eram cheias de solavancos. De Santa Cruz para La Paz eu viajei pela primeira vez num quadrimotor à hélices, que achei sensacional. Agora viajaria num “turbo-hélice”, que era “meio” à jato. Diziam que era muito confortável.

Ninguém sentou-se ao meu lado. Do outro lado do corredor acomodou-se uma senhora índia que estava acompanhada de três filhos, uma “escadinha” mais ou menos de uns 5 a 8 anos. Portanto, quatro pessoas (uma adulta e três crianças) acomodaram-se em duas poltronas. Não tenho certeza, mas acho que não havia ainda a conscientização de que os cintos de segurança são necessários, mas as três crianças, amontoadas e coladas à mãe, não usavam qualquer cinto e a aeromoça ou não viu ou não se importou.

O avião correu na pista e levantou voo passando logo, bem baixinho, sobre Cusco. Diziam que o voo em “prop-jet” era tranquilo, mas ali não havia tranquilidade nenhuma, pois o avião saiu corcoveando, roncando com força feito um doido (certamente para ter força para ultrapassar a Cordilheira), dando pinotes. Meu estômago subia, quase saía pela boca, e descia até... Neste ínterim, os filhos da senhora índia começaram a fazer uma tremenda gritaria. A mãe gritava ainda mais alto. Era como se estivessem sendo esfolados vivos. O que se via da janela começou a ser mesmo impressionante: montanhas que subiam, que desciam, que se inclinavam, que ficavam tortas e na vertical.



A cena que se instalou para sempre na minha memória foi: a índia com um braço procurava tapar os olhos das três crianças ao mesmo tempo. Ela gritava: “No mires! No mires! No mires!”.

Passado mais de meio século, ainda ouço a gritaria e vejo o braço direito da mãe estendido sobre os rostos das três crianças, mas os olhos delas estavam arregalados acima do nível do braço da mãe, fixados na cena de montanha russa ou de fim de mundo que se avistava através da janela. 

Não anotei nada sobre o voo e dele nada mais me lembro, exceto daquela cena: “Não olhem! Não olhem! Não olhem!”, algo tragicômico.  E aquelas crianças frágeis, já devem estar hoje todas velhas, com mais de 60 anos, porém sem dúvida não se esqueceram daquele voo de fim do mundo].



Afastamo-nos rapidamente de Cusco.

As nevezinhas lá embaixo.

La Cordillera Blanca.

O avião perde altura: vamos aterrissar em Lima.

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Francisco Souto Neto em 2022, onde agora reside em Curitiba, 55 anos após sua viagem a Machu Picchu. 

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