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VIAGEM PELA AMÉRICA DO SUL EM 1967
11ª PARTE
A CIDADE SAGRADA DE MACHU PICCHU
por Francisco Souto Neto
Esta é uma
transcrição do meu diário da viagem que fiz a vários países da América do Sul
em 1967, iniciada na semana em que completei 24 anos de idade. Passados 55
anos, é interessante observar os detalhes de como eram feitas as viagens
naquele tempo e as impressões que os lugares causaram a este então jovem
viajante. A transcrição do meu diário de viagem vai entre aspas, e quando eu
achar necessário intervir no texto, farei isto entre colchetes.
CUSCO PELA MANHÃ E A VIAGEM PARA MACHU PICCHU
“Pela manhã, bem cedo, andei pelas
cercanias do Hotel San Agustín para fazer algumas fotos antes da hora de
embarcar de trem para Machu Picchu.
No correio de Cusco: a caixa de coleta.
A DESCOBERTA DE MACHU PICCHU EM 1911
Na época da conquista, os espanhóis
ouviram falar a respeito de uma Cidade Sagrada, mas nunca a descobriram. Seria
o lugar onde viveriam as Virgens do Deus Sol. Passaram-se os séculos. Em 1911,
Hiram Bingham, professor da Universidade de Yale, organizou uma expedição com o
fim de descobrir a sepultura do último Inca. Não a encontrou mas, em
compensação, fez uma descoberta arqueológica importantíssima. Tendo ele ouvido
os nativos falaram a respeito de ruínas “do outro lado das montanhas”, e ciente
da existência de uma lenda a respeito de fabulosa cidade perdida, tão
extraordinária quanto à de Eldorado, o arqueólogo não teve dúvidas:
aventurou-se pela parte mais perigosa dos Andes, montado em burrico.
Diz ele no livro ‘A Cidade Perdida dos Incas’: ‘Aqueles picos coroados de
neves, tentaram-me. Sentia uma compulsão a dizer-me: Vai e olha atrás da crista
dos montes... Alguma coisa perdida atrás da crista dos montes... Perdida e à
tua espera! Vai!’. E o que Bingham viu, a revista Seleções do Reader’s Digest
classifica como ‘um espetáculo hoje comparável, em magnitude, às Pirâmides do
Egito e ao Grand Canyon juntos.
A VIAGEM DE TREM
Atualmente faz-se a viagem a
Machu Picchu em modernos trens. A ferrovia parte de Cuzco. Em duas horas
eleva-se a quase 4000 metros para depois, 1800
metros abaixo, mergulhar na garganta sombria que imobilizou os homens de
Pizarro. Viaja-se então pelo vale sagrado do Rio Urubamba até chega-se a um
penhasco final, com 700 metros de altura, onde deixa-se o trem e
parte-se de micro-ônibus por uma estrada de 8 quilômetros, perigosíssima, íngreme,
cheia de curvas fechadas. O motorista vai cantando para desviar a atenção dos
turistas dos precipícios. A estrada termina no Hotel de las Ruínas, construído
ao lado da Cidade Sagrada.
Desembarcando do trem e subindo a
perigosa Estrada Hiram Bingham de ônibus, quem diria, encontrei o casal Ronald
e Susan Lehman, que conheci na travessia do Lago Titicaca, entre Bolívia e
Peru. E ficamos juntos passeando por Machu Picchu.
Os Filhos do Sol pretenderam
construir uma cidade no topo do mundo... e o conseguiram. A primeira impressão
que se tem de Machu Pucchu, com sua grama muito verde semeada de flores
vermelhas, e dos edifícios que se alinham pelo flanco da montanha, é de enorme
encantamento.
Machu Picchu não está em ruínas.
Ela é toda uma cidade intacta, à qual faltam somente os habitantes. O
grande número de casas e a imponência dos palácios indicam que se tratava de
uma cidade, mas a sua situação na parte mais inacessível dos Andes, cercada de
paredões verticais, e também pelo isolamento do império, parece indicar que
Machu Picchu era a Cidade Santa, residência das Virgens do Deus Sol ,
equivalentes às vestais gregas, o que também se supõe pelos esqueletos lá
encontrados, somente de mulheres.
As praças sagradas são muito amplas,
e os templos de esmerada construção. Na parte mais alta está o relógio solar
denominado Intihuatana. As principais edificações, como o Palácio da
Sacerdotisa, o Templo do Sol, o Tambo-Tocco, o conjunto das Rochas Sagradas,
são em granito branco e polido. A cidade é toda circundada por gigantescos
degraus destinados ao cultivo.
Do alto das montanhas contemplei com
respeito as pedras incaicas, testemunhas de um glorioso passado que se perde na
noite dos tempos.
.
Abaixo, fotos com a câmera de Ronald Lehman:
Após
excursionarmos pela cidade, visitando o famoso Templo das Três Janelas, o
Palácio da Sacerdotisa e o relógio solar denominado Intihuatana, buscamos com
os olhos o cume da montanha vizinha. Devido ao oxigênio rarefeito daquela
altitude, cansávamo-nos com extrema facilidade. Susan e Ronald levavam
comestíveis americanos, incluindo água potável norte-americana. E eu,
chocolates e bolachas. Assim, fizemos piquenique ao chegarmos a um ponto alto
da montanha, tendo sob nossos pés toda a cidade Sagrada, fato que me causou
profunda impressão. No meu regresso eu contaria muita coisa, mas não
conseguiria descrever como verdadeiramente era a sensação de abraçar Machu
Picchu com os olhos. Foi como se pairássemos fluídicos sobre um mundo irreal. E
naquele momento, levado pela inspiração, compus um soneto em versos de doze
sílabas poéticas, que denominei...
Alturas
da Cidade Sagrada
Soneto de Francisco Souto Neto
Além dos limites das nevadas montanhas
Entre vulcões o rio sagrado serpenteia
E atinge da profunda floresta as
entranhas
De misterioso e lendário esplendor tão
cheia.
Da cidadela sagrada eu galgo as alturas
Para ser transportado ao coração da
História.
Mas tudo é paradoxal e sinto tonturas
Do presente obscuro e passado de glória.
São milenares vestígios de obras tão grandes...
Tierra de los Incas y tierra de
temblores
Com tiaras de mármore na crista dos
Andes.
São ruínas duma terra outrora
venerada...
Tierra de los Incas y tierra de
esplendores...
Machu Picchu! Alturas da Cidade Sagrada!
[No começo da década de 50 meu pai descobriu discos
long-play da peruana Yma Sumac, descendente dos Incas. Ele foi comprando todos
os discos que eram lançados no Brasil. Ele e minha mãe tornaram-se fãs, e
também nós, os filhos. Esses discos de 33 rpm tenho-os até hoje. Lá pelo final
do século XX os discos foram relançados em CD e foram surgindo outros, até
então inéditos no Brasil.
YMA SUMAC
Yma Sumac (1922-2008) foi quem impulsionou meu
interesse pelo Peru. Acompanhei a trajetória da grande cantora até à sua morte.
Um dos seus maiores sucessos é Chuncho (Vozes da
Floresta), no disco Inca Taqui, na qual ela imita os sons de animais e pássaros
da floresta. Tenho o disco abaixo em long-play e em CD. Vale a pena clicar para
ouvir:
https://www.youtube.com/watch?v=JgoA12ytiko
Em 1960 Yma Sumac apresentou-se em Moscou, acompanhada
ao violão pelo marido Moisés Vivanco, e aqui abaixo está a sua admirável
interpretação de Chuncho sem orquestra, gravada no palco em som e imagem. Vale
também para ver a sua poderosa apresentação e as expressões faciais enquanto se
move em cena!]
https://www.youtube.com/watch?v=cHCro9NYccs
ADEUS A
CUSCO
Após algum tempo juntos, despedi-me do casal
Lehman. Trocamos endereços para eu enviar-lhes as fotos que tirei, e para eles
enviarem-me as fotos que tiraram. Não só achei melhor deixá-los à vontade, mas
também porque eu precisava tomar o próximo trem de volta a Cusco porque no dia
seguinte eu tinha passagem aérea para Lima, a capital do país.
Eu não imaginava que no dia seguinte eu encontraria
os Lehman... no aeroporto!
De volta ao meu hotel de Cusco, deitei-me muito cedo porque estava cansadíssimo. Dormi muito bem e na manhã seguinte tive ainda várias atividades antes de ir para o aeroporto.
O VOO
HORRIPILANTE PARA LIMA
[Eu estava animadíssimo para o voo, porque até
então, desde criança eu viajara num único tipo de avião: nos DC-3, que eram
aeronaves para apenas 28 passageiros e com duas hélices. Eram aviões antigos
que voavam muito baixo e as viagens eram cheias de solavancos. De Santa Cruz
para La Paz eu viajei pela primeira vez num quadrimotor à hélices, que achei
sensacional. Agora viajaria num “turbo-hélice”, que era “meio” à jato. Diziam
que era muito confortável.
Ninguém sentou-se ao meu lado. Do outro lado do
corredor acomodou-se uma senhora índia que estava acompanhada de três filhos,
uma “escadinha” mais ou menos de uns 5 a 8 anos. Portanto, quatro pessoas (uma
adulta e três crianças) acomodaram-se em duas poltronas. Não tenho certeza, mas
acho que não havia ainda a conscientização de que os cintos de segurança são
necessários, mas as três crianças, amontoadas e coladas à mãe, não usavam
qualquer cinto e a aeromoça ou não viu ou não se importou.
O avião correu na pista e levantou voo passando
logo, bem baixinho, sobre Cusco. Diziam que o voo em “prop-jet” era tranquilo,
mas ali não havia tranquilidade nenhuma, pois o avião saiu corcoveando,
roncando com força feito um doido (certamente para ter força para ultrapassar a
Cordilheira), dando pinotes. Meu estômago subia, quase saía pela boca, e descia
até... Neste ínterim, os filhos da senhora índia começaram a fazer uma tremenda
gritaria. A mãe gritava ainda mais alto. Era como se estivessem sendo esfolados vivos. O
que se via da janela começou a ser mesmo impressionante: montanhas que subiam,
que desciam, que se inclinavam, que ficavam tortas e na vertical.
A cena que se instalou para sempre na minha memória
foi: a índia com um braço procurava tapar os olhos das três crianças ao mesmo
tempo. Ela gritava: “No mires! No mires! No mires!”.
Passado mais de meio século, ainda ouço a gritaria e vejo o braço direito da mãe estendido sobre os rostos das três crianças, mas os olhos delas estavam arregalados acima do nível do braço da mãe, fixados na cena de montanha russa ou de fim de mundo que se avistava através da janela.
Não anotei nada sobre o voo e dele nada mais me lembro, exceto daquela cena: “Não olhem! Não olhem! Não olhem!”, algo tragicômico. E aquelas crianças frágeis, já devem estar hoje todas velhas, com mais de 60 anos, porém sem dúvida não se esqueceram daquele voo de fim do mundo].
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