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VIAGEM PELA AMÉRICA DO SUL EM 1967
8ª PARTE
EM TREM DE PUNO A CUSCO
por Francisco Souto Neto
Esta é uma
transcrição do meu diário da viagem que fiz a vários países da América do Sul
em 1967, iniciada na semana em que completei 24 anos de idade. Passados 55
anos, é interessante observar os detalhes de como eram feitas as viagens
naquele tempo e as impressões que os lugares causaram a este então jovem
viajante. A transcrição do meu diário de viagem vai entre aspas, e quando eu
achar necessário intervir no texto, farei isto entre colchetes.
O EMBARQUE DE TREM EM PUNO
“Após a travessia do Lago Titicaca em
navegação de 13 horas, o navio atracou na cidade peruana de Puno. Após a
aduana, eu e os passageiros do navio tomamos o trem parado ali ao lado, que nos
levaria a Cusco.
Era um trem com muitos vagões, bem
extenso, e todos os vagões eram divididos ao meio em primeira e segunda classe,
separadas por uma porta trancada. Os lugares não eram reservados; sentava-se
onde quisesse. Na primeira classe em que embarquei, eu vi apenas um passageiro
do navio: o italiano Enrico Rafaelle Longo. Infelizmente Melinda Mills ficou em
outro vagão com sua irmã e cunhado, bem como os meus outros amigos da travessia
do Titicaca. Em frente a cada duas poltronas havia uma mesa de fórmica, onde
eu poderia escrever neste meu caderno de memórias, e também tomar as refeições.
As poltronas são confortáveis, mas não reclináveis. A estrada de ferro é de
bitola larga.
Durante as primeiras duas horas a viagem
seguiu monótona, naquela sequência que é o deserto do Altiplano. Muitas vezes o
trem parou em estações de vilas, quando a primeira classe era invadida por
índios e cholas, vendendo os mais variados objetos de artesanato e alimentos, incluindo-se refeições
servidas em pratos de papelão, que as pessoas comem sem talheres, com os dedos.
Foi o que, da janela do trem, vi ocorrer ali fora. Contei o número de índios
que entraram de uma só vez na primeira classe para vender mercadorias: eram 21. É necessário muito
cuidado com a bagagem para não ser furtado. O que mais me impressionou nessas
paradas, foi ver as cholas exporem ao chão e ao sol, a sua mercadoria, no que se
inclui ovelhas esquertejadas – algo muito anti-higiênico.
Melinda desceu para comprar um objeto
e viu-me na janela do trem. Acenou alegremente, desapareceu por uns instantes e
minutos antes do trem partir, ela surgiu no meu vagão com sua bolsa a
tiracolo. Deixou seus familiares cuidando de sua mala e prosseguiu a viagem
comigo e Rafaelle.
Somente às 10:30 horas a paisagem
começou a se modificar: surgiram os contrafortes da Cordilheira Real com neves eternas. Eu perscrutava o panorama à procura de vulcões que pudessem ser
identificados pelo caminho. As aldeias se sucediam, cada vez em altitude maior.
Encomendamos almoços ao garçon do trem. O sol era ardente e cortante através da janela.
Mas quando passávamos pela sombra das montanhas fazia muito frio. Meus lábios
secaram e os de Melinda e Rafaelle estavam partidos. Vimos alguns lhamas e um
imenso condor que dava giros pelo éter.
Ao meio-dia o trem continuava
subindo. Nas aldeias por onde passamos, a altitude era sempre superior a 4.000
metros. Ficamos todos meio silenciosos, talvez um pouco afetados pelos
efeitos da altitude da vez maior.
A CARNE QUASE 'PODRIDA'
Numa das paradas, um índio subiu na
primeira classe carregando, ofegante, dois enormes sacos de estopa. Parou quase
à minha frente, suado, abaixou-se e gatinhando sob minha mesa, colocou um dos
sacos embaixo da poltrona que estava diante de mim (encontrava-se vazia, pois éramos poucos
passageiros ocupando a primeira classe), pôs o outro saco abaixo das poltronas
umas quatro ou cinco filas à frente... e rumou para a segunda classe pela porta
que então estava fechada sem ser à chave. O trem prosseguiu enquanto
esperávamos pelo nosso almoço. De repente senti um cheiro muito desagradável de
açougue. Não era cheiro de podre (diz-se “podrido” em espanhol), mas de CARNE,
como sentimos às vezes em supermercados. E vinha do saco de estopa. Com os pés,
tentei empurrá-lo para a frente, em vão. Parecia grudado ao chão. Melinda tentou ajudar-me e, não conseguindo, pediu
socorro a Rafaelle, que também sentira o cheiro enjoativo. Melinda levantou-se, Rafaelle
sentou-se ao meu lado e então, ‘a quatro pés’, começamos a tentar empurrar o
saco de estopa para a frente. Pisar sobre toda aquela carne era como estar
pisando uma gigantesca esponja ou em quiabos viscosos. Melinda gargalhava.
Desistimos, pois a carne pesava como chumbo. Minha amiga mudou-se dali e foi sentar-se
ao lado de Rafaelle. Irritado, fiz uma derradeira tentativa: ‘deitei-me’ sobre
o assento, apoiei as mãos sobre o encosto da poltrona e fiz um esforço máximo
sobre o saco de estopa... e ele deslizou como quem desliza na neve ou escorrega no sabão! Foi parar
sob a terceira fila de assentos após o meu, arrastando seu cheiro quase 'podrido' para outras vítimas.
Chegou o almoço. Recusei a salada porque não gostei do estado das folhas. A sopa também não tinha aspecto
convidativo, o cozinheiro que me desculpe. Pelo menos o arroz com batatas e
carne estavam saborosos. Gelatina como sobremesa. A altitude era então de
4.300 metros.
Às duas da tarde atingimos a Garganta
de Raya (‘Pase de Raya’ ou 'Abra la Raya'). Apesar de ter várias denominações, esse lugar é apenas a divisa entre os 'municípios' de Puno e Cusco. Havia neve em ambos os lados do trem.
A GARGANTA DE RAYA
[A Garganta de Raya é o ápice em
altitude na viagem em trem de Puno a Cusco. Pela primeira vez neste relato que
já está em seu oitavo capítulo, vou ilustrar, imediatamente abaixo, com fotografias
atuais da Garganta de Raya, que acabo de encontrar no Google]
[Em 2022 o trem de Puno a Cusco é o que se vê nas fotos acima. Note-se que na penúltima foto, continuam mantendo uma mesa entre as poltronas, só que o aspecto do vagão é agora de grande beleza e luxo. E a última foto mostra que o último vagão da composição funciona como um bar, com a parte traseira aberta, ao ar livre.]
[Voltemos, abaixo, ao ano de 1967.]
Após a Garganta de Raya o trem começa
a descer e corre muito. A paisagem muda completamente, pois agora os vales são
muito férteis e a terra é toda aproveitada para plantio, até ao alto dos
montes; tem-se a impressão de que os peruanos herdaram a técnica inca de
cultivar a terra em degraus.
Dentro do vagão alguns turistas abriram
uma garrafa de champagne, comemorando algo. Da janela do trem observei que os
lavradores constroem caminhos artificiais de água para irrigar o solo.
Vacas, ovelhas e lhamas pastam grama verde-pálida, de rara beleza. Até às 4
horas da tarde, a paisagem causa surpresa a cada dobra do terreno. Pedi um
lanche.
O trem parou num lugarejo e surgiu o
índio buscando sua carne quase podrida. Não a encontrando, ficou alvoroçado.
Após alguns segundos encontrou o saco de estopa e desceu, arcado pelo brutal
peso de ambos os sacos, mas todo satisfeito.
Veio o lanche, que era de
primeiríssima: torradas sui-gêneris com manteiga, três tipos de geleia e
delicioso café com leite. Talvez eu estivesse faminto, por gostar tanto do
lanche. No açucareiro não há uma colher ou concha apropriada, como na Bolívia.
Agora o trem margeava o Rio Vilcanota, que segue turbilhonante entre rochas. Ele
é afluente do Urubamba, que é afluente do Marañon-Solimões-Amazonas.
Às 7 da noite avistamos as luzes da
Venerável Cidade de Cusco, o umbigo do mundo... a capital do poderoso Império
Inca!
Uma fascinante aventura está para
começar...”
-o-
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