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VIAGEM PELA AMÉRICA DO SUL EM 1967
9ª PARTE
A
VENERÁVEL CIDADE DE CUSCO
por
Francisco Souto Neto
Esta é uma transcrição do meu diário da viagem que fiz a vários países
da América do Sul em 1967, iniciada na semana em que completei 24 anos de
idade. Passados 55 anos, é interessante observar os detalhes de como eram
feitas as viagens naquele tempo e as impressões que os lugares causaram a este
então jovem viajante. A transcrição do meu diário de viagem vai entre aspas, e
quando eu achar necessário intervir no texto, farei isto entre colchetes.
CUSCO
“Era pouco mais das 19:00 horas quando desembarcamos em Cusco.
Acompanhamos Melinda Mills que viajara conosco, pela plataforma da estação
ferroviária, até que ela localizou a irmã e
cunhado que estavam em outro vagão. Naquele momento fomos abordados por um
homem cortês, que nos ofereceu seu táxi (um elegante carrão norte-americano, ‘último
tipo’ e com ar condicionado) e nos indicou um hotel, dizendo-nos: ‘Hotel
recém-inaugurado, um dos melhores de Cusco, no coração da cidade, moderno,
confortabilíssimo, com banho privativo, todo acarpetado, aquecedor em cada
apartamento, telefones em fase de instalação. Preço da diária incluindo
impostos: dois dólares’. Nós nos entreolhamos descrentes. Mas resolvemos ir
todos juntos para vermos se o hotel era mesmo bom... e era! Cochichávamos
segurando o riso, como colegiais: ‘Si, es mui bueno... y barato. Es um regalo
calido del cielo!’. Meu apartamento é em frente ao de Joanne e Paul e dois
depois do de Rafaelle. Melinda ficou em outra ala do hotel. [OBSERVAÇÃO:
Verifiquei através do Google e descobri que o Hotel San Agustín continua
existindo em 2022. Quanto à diária de 2 dólares, creio que anotei isso errado
em meu diário. Era realmente muito barato, mas talvez fosse 20 dólares e não 2].
Dormi muito bem e acordei-me às 6:30,
coisa rara. É que a ideia de estar em Cusco me fascinava. Fui à janela e olhei
longamente a Capital Arqueológica das Américas.
O Império Inca abrangia Peru,
Bolívia, norte do Chile, noroeste da Argentina, pedaços das regiões onde estão
situados Acre e Rondônia, ainda o Equador e o sul da Colômbia. Era um país
perfeitamente organizado, onde ninguém passava fome. Não vou escrever sobre o
alto grau de civilização que eles atingiram, porque toda a sua História é óbvia
e clara; quem estudou pelo menos até ao ginásio tem a obrigação de conhecer um
pouco da História do continente sul-americano. E a capital de todo esse vasto
império era Cusco. A palavra significa ‘umbigo’, ou seja, o centro do mundo.
Na realidade há 4 Cuscos sobrepostas:
a pré-incaica, a incaica, a espanhola e a peruana contemporânea. Eu estava
ávido para conhecer “todas” as Cuscos. Eram 7 horas quando passei pelo quarto
de Rafaelle, que já estava acordado. Saímos pelas estreitas ruelas e de acordo
com meus planos pré-estabelecidos, deveríamos visitar em primeiro lugar... a
“Compañia”, que distava apenas dois quarteirões do nosso Hotel San Agustín”.
La Companñia é a mais bela igreja do
Peru e uma das mais ricas do mundo. Ela ocupa o Amaru-Cancha (Pátio das
Serpentes). Íamos entrando mas estacamos na porta! Tanto esplendor nos
ofuscava! Parece um palácio: todo o interior resplende em outro e prata.
Refletida de mil modos, a luz peneirada recai nas colunas recobertas de prata,
nos capitéis de ouro, no altar, nas molduras douradas. O tempo e o espaço
parecem abolidos quando a gente se sente pasmo ante tamanha beleza. Rafaelle,
que já viu a Capela Sistina, confessou-se fascinado por La Compañia.
Saindo dali, fomos à Calle Loretto,
uma rua fantástica! Muito estreita, tem de ambos os lados os muros incaicos que
servem de alicerces às construções espanholas e às peruanas contemporâneas.
Fomos a La Merced, que estava
fechada. Mesmo assim, resolvemos entrar por uma porta ao lado que estava aberta
e... demos com o claustro, que eu tanto admirava através de fotografias. Um
funcionário da igreja barrou-nos. Não era hora nem dia de visita, mas então
lembrei-me de apresentar-lhe as minhas credenciais, obtidas graças à
amabilidade e interesse do Dr. Brasil Borba, diretor da minha Faculdade de
Direito, e do Prof. Joselfredo Cercal de Oliveira, diretor da de Filosofia, que
assinaram o documento. Essas credenciais informavam que eu era um brasileiro
estudante de Direito, que me encontrava em “viagem de estudos” através da
América do Sul. Graças a isso, deixaram-nos entrar, mas somente no claustro.
[Devo acrescentar que o Dr. Brasil Borba ficou muito entusiasmado quando, em Ponta Grossa, disse-lhe qual seria o roteiro que eu organizara por mim mesmo, para a minha viagem pela América do Sul. Como seria uma viagem muito extensa, apresentei ao Dr. Brasil um requerimento solicitando o abono às minhas faltas às aulas. Mais tarde ele me disse que o meu pedido foi o único, dentre todos os apresentados no ano de 1967, que foi aprovado. Dr. Brasil impôs uma condição: a de que, ao meu retorno, agendasse um dia para eu fazer uma palestra aos professores e alunos, relatando a essência da minha viagem. Eu trouxera algumas folhas de coca da Bolívia, dentro de um envelope de plástico que, enquanto eu falava, correu de mão em mão de todos os presentes, que ficaram vivamente impressionados, não só com as histórias da coca, mas com tudo o que falei. A propósito, tenho até hoje o envelope de plástico com as folhas secas de coca, que fotografei. Até hoje o envelope transparente contendo as folhas está exatamente como se encontrava quando o levei à Faculdade de Direito de Ponta Grossa para a minha palestra.
Após fazer este acréscimo em março de 2022,
quando já estamos há mais de dois anos envolvidos pelo combate à pandemia da
Covid-19, volto ao meu diário de viagem.]
Assim, pudemos admirar o claustro de
La Merced e tirar fotografias. Seu estilo é hispano-mourisco e duvido que haja
em toda América algo tão belo como referido claustro. A sacristia nós não
pudemos visitar, mas dizem que contém tesouros de ourivesaria, jóias de ouro e
prata incrustadas de pedras preciosas. Na cripta estão os restos dos Almagros e
de Gonzalo Pizarro.
Gonzalo Pizarro era irmão do cruel
conquistador Francisco Pizarro, a quem acompanhou na terceira expedição deste
pela conquista do Peru em 1532. Gonzalo foi um dos mais corruptos, brutais e
cruéis conquistadores do Novo Mundo, sendo ainda muito pior contra os nativos.
A história dele é complicada, não me lembro bem, mas sei que foi quem mandou
matar Atahualpa, mas no fim, tendo se desentendido com o rei da Espanha, foi
condenado à morte e decapitado. Esses conquistadores que hoje “repousam”
eternamente nas criptas das igrejas, foram uma corja horrorosa e má.
Saímos pelas ruelas. Rafaelle é um
ótimo companheiro de viagem, muito culto. Ele diz que fala 72 idiomas, mas não
acredito. Dr. Faris Michaelle, aqui de Ponta Grossa, que era amigo de meu pai
(e é meu amigo, pois somos pares de diretoria no Centro Cultural Euclides da
Cunha), fala cerca de 30 idiomas. Entretanto não acho que a coisa seja bem
assim. Ele e Rafaelle talvez falem com fluência uns dez idiomas, e o resto eu
penso que apenas “arranham”.
Nas ruelas os índios carregam pesados
fardos nas costas, sustentados por correias presas ao peito. Levam legumes,
estrume para ser vendido como adubo, feixes de lenha, carne seca, trigo.
Nosso passeio seguinte foi à Plaza de
Armas, onde estão cinco das mais importantes construções de Cusco [...mas
este assunto ficará para a próxima parte deste relato que é a transcrição das
anotações do meu caderno de viagem de 1967].
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