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VIAGEM
PELA AMÉRICA DO SUL EM 1967
4ª PARTE
OS CÃES MENDIGOS DE TIAHUANACO E A DRAMÁTICA VIAGEM DE ÔNIBUS PARA LA PAZ.
por
Francisco Souto Neto
Esta é uma transcrição do meu diário da viagem que fiz a vários países
da América do Sul em 1967, iniciada na semana em que completei 24 anos de
idade. Passados 55 anos, é interessante observar os detalhes de como eram
feitas as viagens naquele tempo e as impressões que os lugares causaram a este
então jovem viajante. A transcrição do meu diário de viagem vai entre aspas, e
quando eu achar necessário intervir no texto, farei isto entre colchetes.
OS TRISTES CÃES MENDIGOS DE TIAHUANACO
“Após visitar as ruínas de Tiahuanaco, o índio que fora o meu guia nas
ruínas levou-me de volta à rua de onde partiria o micro-ônibus para La Paz.
Recompensei o índio com uma
gratificação acima do preço que havíamos combinado. Então ele me disse mais ou
menos o seguinte ao pé do ouvido: “O ônibus que vem aí vai ser o último do dia.
Quando ele aparecer, todas as pessoas vão correr para entrar nele. Corra também
para não ter o perigo de ficar para trás”.
Não havia um “ponto de ônibus”. Era
para eu ficar aguardando por ali. A rua principal da aldeia não tinha calçamento.
Era larga e ninguém andava nela: os nativos estavam todos sentados no chão,
encostados nas paredes das casas e nos muros. Eles pareciam mastigar algo, mas
eu sei muito bem que mascavam folhas de coca, porque isto é habitual nesta
parte do mundo. Mascando coca, eles enganam a fome e ficam entorpecidos. Não
tem nada a ver com cocaína. Mascar coca é menos grave do que fumar
Pall Mall.
Entretanto, apesar da quietude das
pessoas, no centro dessa rua havia um movimento meio frenético de cães. Todos caminhavam
aparentemente em zigue-zague, enquanto cheiravam o chão, sem dúvida em busca de
fragmentos de comida. Eles não corriam, mas ainda assim, nos seus passos
incansáveis levantavam um pouco de poeira.
Na mesma hora lembrei-me de ter lido
quando ainda estava no Brasil: ‘Se for a Tiahuanaco, lembre-se de levar alguns
pães para os cachorros mendigos da aldeia, que são centenas’. E eram, sim,
centenas deles.
A cena está gravada na minha memória
como uma das mais estranhas que vi em toda vida: todas as pessoas mostravam-se
quietas e sentadas no chão ao lado das casas, enquanto a gigantesca matilha
perscrutava o chão do meio da rua, freneticamente, com seus narizes cheios de
poeira.
Eu, encostado na parede mas em pé,
muito indisposto por causa do mal da montanha, sentia-me como se meu corpo não
obedecesse muito bem à mente... e esta encontrava-se também num estado
semelhante a um torpor. É uma pena que eu não tenha fotografado aquele surreal
movimento canino de ir para lá e para cá, às centenas, todos a farejar o chão.
Subitamente um mulher veio correndo
de algum lugar. Falava alto enquanto corria. Todas as pessoas continuaram sem
esboçar qualquer reação, nem sequer um olhar de curiosidade. A mulher começou a
bater num homem sentado no chão, até que ele se pôs em pé. Apesar de estar
prejudicado pelo 'soroche', eu cheguei a tirar uma fotografia do começo da briga.
Mas de repente a coisa ficou muito
feia, porque envolveram-se quatro ou cinco pessoas, e uma delas levantou o
braço com a mão empunhando um facão. Alguém arrancou-lhe o facão. A mulher furiosa não
era uma chola, porque usava saia justa e não tinha chapéu coco. E tudo silenciou novamente. As pessoas continuaram
mascando coca sentadas no chão e encostadas nas paredes, enquanto as centenas
de cães mendigos prosseguiam no seu ritual de andar sem parar, esfregando o
nariz na poeira.
O DIA DO MAIS DESVAIRADO E DO MAIS INSÓLITO EMBARQUE
QUE PARA MIM POSSA TER EXISTIDO
O tempo foi passando. O sossego era
tão grande que aquele silêncio parecia pesar. Bem dizem que a bonança
antecede a tempestade, porque de repente o mundo pareceu vir abaixo: surgiu um
micro-ônibus na estrada, vindo em nossa direção. O povo, semi adormecido
encostado às paredes, ululou. Todos foram tomados de vida, pegaram suas muitas
trouxas e em gritos lamentosos puseram-se a correr em direção ao ônibus como
num estouro de boiada. Fiquei meio perplexo, mas percebi que a coisa era “de
vida ou morte”. Com 'soroche' e tudo, disparei no meio dos nativos. Os cachorros
abriram espaço e correram para os dois lados da via pública, onde antes estavam
as pessoas, enquanto agora éramos nós, os humanos, os donos da rua, nela levantando
poeira. Algumas mães carregavam seus filhos pendurados às costas.
Já perto do micro-ônibus, percebi que ele estava lotado. Havia muita gente em pé. Que momento horrível: os índios com suas trouxas espremendo-se contra a porta do veículo, entulhada de cholas. Eu, com falta de oxigênio, fui sendo empurrado no meio da turba em seu movimento desvairado em direção à porta. É indescritível e difícil de acreditar, mas fui sendo levado quase como se não tocasse os pés no chão, espremido por todos os lados. Empurrado e imprensado até chegar à porta do veículo, quase rolei com um pião em câmara lenta e, zupt, vi-me dentro do ônibus como num passe de mágica. Havia muita gritaria do lado de fora, quando o motorista fechou a porta... e o veículo foi se movendo. Homens e mulheres esmurravam a frente do ônibus, a porta, e alcançavam as janelas, batendo, batendo. O ônibus já estava lotado antes de chegar, de modo que nós, que conseguimos entrar, ficamos em pé como sardinhas em lata.
A turba desatinada que não conseguiu
embarcar, foi ficando para trás. Dentro do ônibus, era um tremendo aperto e o
cheiro dos passageiros ou das trouxas parecia assemelhar-se a algum tipo de
limão. Vi que ao lado esquerdo do motorista, isto é, entre o assento deste e a parede com janela, havia um banquinho no chão, sobre o qual ia sentado
um índio de costas para a frente do ônibus. Sim, ele viajava espremido no
canto. Pessoas sentaram-se nos degraus de entrada ao ônibus. Eu estava bem na
frente e por sorte consegui agarrar-me num dos ferros logo atrás do motorista.
Entre aquele que ia espremido ao lado do chofer e a primeira fila de dois
assentos com três passageiros a ocupá-lo, havia outro banquinho de madeira com uns
30 centímetros de altura – de costas para a janela e bem abaixo dela – e nele
iam sentados uma senhora mestiça (não era chola) ao lado de um jovem índio. Ela
me olhou bem nos olhos. Acho que eu, por causa do 'soroche', devia estar com um
aspecto de pessoa que estaria passando mal. Agora os passageiros, feitos
sardinhas em lata, viajavam bem silenciosos. O barulho era só do motor do
ônibus. E aquela senhora me perguntou, em bom espanhol, se eu não estava
passando bem. Respondi a ela: 'El soroche, señora'. Ela fez então algo
incrível: abriu um sorriso e com o próprio quadril empurrou o jovem que estava
ao seu lado e disse-me: “Sente-se aqui”. Ao lado dela, havia espaço para uma só nádega. Sentei-me. Além de ficar metade no ar, não tinha onde pôr as pernas,
que foram uma sobre as da citada senhora e a outra sob as do motorista. Aquele
que ao meu lado esquerdo estava espremido ao lado do motorista, tinha as pernas
encolhidas. Sei que não fui correto para com o jovem índio por aceitar que
fosse desalojado, mas para quem estava praticamente precisando de um hospital e sem raciocinar com fluidez, não
pude deixar de aproveitar a oportunidade de sentar-me. Disse a ele: 'Gracias',
mas ele, indiferente, nada reclamou e nada respondeu.
E que motorista impassível! Havia
gente sentada perto dos pedais do veículo, outros em pé apoiados sobre seus
ombros, e ele parecia estar alheio a tudo. Acho que se trata de um índio
curtido de muitas viagens iguais àquela.
Devo lembrar que também, lá pela metade
do micro-ônibus, houve algum desentendimento entre passageiros e o começo de
uma briga, mas que logo se amainou. Eu estava quase delirando e pensava em
anular todo o resto da viagem, cancelando Peru, Chile, Argentina...
Cheguei vivo ao hotel, de onde telefonei
ao Bernardo, contando como estava me sentindo. Logo depois Bernardo bateu à
minha porta. Aluno do penúltimo ano de Medicina, examinou-me como um médico
formado, coçou a cabeça e exclamou: 'Caramba'! Ele me medicou e em seguida
levou-me a uma ‘confiteria’ a poucos metros do hotel, onde ambos tomaríamos um
creme de maisena. O casal proprietário ficou consternado com minha história.
Prepararam um creme muito especial, com folhas de coca. Foi a primeira vez que
meu estômago aceitou algo em La Paz. Após o creme, veio um chá de coca. Sem dúvida, eu começo a livrar-me do soroche”.
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Na 5ª
PARTE desta narrativa, farei o relato de como sarei do "soroche" e passei a aproveitar a estada em La Paz, antes de partir rumo ao Peru.
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