quarta-feira, 9 de março de 2022

VIAGEM PELA AMÉRICA DO SUL EM 1967 - 4ª PARTE - OS CÃES MENDIGOS DE TIAHUANACO E A DRAMÁTICA VIAGEM DE ÔNIBUS PARA LA PAZ, por Francisco Souto Neto



Ônibus superlotado que lembra aquele de Tiahuanaco a La Paz (charge encontrada na internet)


Comendador Francisco Souto Neto

 

---------o--------

 

VIAGEM PELA AMÉRICA DO SUL EM 1967

4ª PARTE

OS CÃES MENDIGOS DE TIAHUANACO E A DRAMÁTICA VIAGEM DE ÔNIBUS PARA LA PAZ.

 

por  Francisco Souto Neto

 

Esta é uma transcrição do meu diário da viagem que fiz a vários países da América do Sul em 1967, iniciada na semana em que completei 24 anos de idade. Passados 55 anos, é interessante observar os detalhes de como eram feitas as viagens naquele tempo e as impressões que os lugares causaram a este então jovem viajante. A transcrição do meu diário de viagem vai entre aspas, e quando eu achar necessário intervir no texto, farei isto entre colchetes.

 

OS TRISTES CÃES MENDIGOS DE TIAHUANACO

 

“Após visitar as ruínas de Tiahuanaco, o índio que fora o meu guia nas ruínas levou-me de volta à rua de onde partiria o micro-ônibus para La Paz.

Esta é a triste aldeia indígena que surgiu ao lado das ruínas de Tiahuanaco. Esta foi a última foto que tirei do índio que foi meu guia nas ruínas. Ele é altivo e nobre e sabe da grandeza do seu antigo povo. Ao fundo, a cúpula e torre da Igreja de São Pedro. A parede de barro denota a pobreza da aldeia. Mas ao mesmo tempo a História é admirável!

Passando em frente à Igreja de São Pedro, sentei-me para descansar um pouco, enquanto o índio fotografou-me... e quase me deixou e também a igreja fora da foto. Não me animei a falar com o Padre Jaime porque, com “soroche” e cansado, só queria chegar logo ao ponto do ônibus e voltar para La Paz.

Recompensei o índio com uma gratificação acima do preço que havíamos combinado. Então ele me disse mais ou menos o seguinte ao pé do ouvido: “O ônibus que vem aí vai ser o último do dia. Quando ele aparecer, todas as pessoas vão correr para entrar nele. Corra também para não ter o perigo de ficar para trás”.

Não havia um “ponto de ônibus”. Era para eu ficar aguardando por ali. A rua principal da aldeia não tinha calçamento. Era larga e ninguém andava nela: os nativos estavam todos sentados no chão, encostados nas paredes das casas e nos muros. Eles pareciam mastigar algo, mas eu sei muito bem que mascavam folhas de coca, porque isto é habitual nesta parte do mundo. Mascando coca, eles enganam a fome e ficam entorpecidos. Não tem nada a ver com cocaína. Mascar coca é menos grave do que fumar Pall Mall.

Entretanto, apesar da quietude das pessoas, no centro dessa rua havia um movimento meio frenético de cães. Todos caminhavam aparentemente em zigue-zague, enquanto cheiravam o chão, sem dúvida em busca de fragmentos de comida. Eles não corriam, mas ainda assim, nos seus passos incansáveis levantavam um pouco de poeira.

Na mesma hora lembrei-me de ter lido quando ainda estava no Brasil: ‘Se for a Tiahuanaco, lembre-se de levar alguns pães para os cachorros mendigos da aldeia, que são centenas’. E eram, sim, centenas deles.

A cena está gravada na minha memória como uma das mais estranhas que vi em toda vida: todas as pessoas mostravam-se quietas e sentadas no chão ao lado das casas, enquanto a gigantesca matilha perscrutava o chão do meio da rua, freneticamente, com seus narizes cheios de poeira.

Eu, encostado na parede mas em pé, muito indisposto por causa do mal da montanha, sentia-me como se meu corpo não obedecesse muito bem à mente... e esta encontrava-se também num estado semelhante a um torpor. É uma pena que eu não tenha fotografado aquele surreal movimento canino de ir para lá e para cá, às centenas, todos a farejar o chão.

Subitamente um mulher veio correndo de algum lugar. Falava alto enquanto corria. Todas as pessoas continuaram sem esboçar qualquer reação, nem sequer um olhar de curiosidade. A mulher começou a bater num homem sentado no chão, até que ele se pôs em pé. Apesar de estar prejudicado pelo 'soroche', eu cheguei a tirar uma fotografia do começo da briga.

Mulher batendo no homem, talvez seu marido e talvez embriagado. À direita, um menino e uma chola, quiçá sua mãe, observam a cena.

Mas de repente a coisa ficou muito feia, porque envolveram-se quatro ou cinco pessoas, e uma delas levantou o braço com a mão empunhando um facão. Alguém arrancou-lhe o facão. A mulher furiosa não era uma chola, porque usava saia justa e não tinha chapéu coco. E tudo silenciou novamente. As pessoas continuaram mascando coca sentadas no chão e encostadas nas paredes, enquanto as centenas de cães mendigos prosseguiam no seu ritual de andar sem parar, esfregando o nariz na poeira.




 

O DIA DO MAIS DESVAIRADO E DO MAIS INSÓLITO EMBARQUE

 QUE PARA MIM POSSA TER EXISTIDO

 

O tempo foi passando. O sossego era tão grande que aquele silêncio parecia pesar. Bem dizem que a bonança antecede a tempestade, porque de repente o mundo pareceu vir abaixo: surgiu um micro-ônibus na estrada, vindo em nossa direção. O povo, semi adormecido encostado às paredes, ululou. Todos foram tomados de vida, pegaram suas muitas trouxas e em gritos lamentosos puseram-se a correr em direção ao ônibus como num estouro de boiada. Fiquei meio perplexo, mas percebi que a coisa era “de vida ou morte”. Com 'soroche' e tudo, disparei no meio dos nativos. Os cachorros abriram espaço e correram para os dois lados da via pública, onde antes estavam as pessoas, enquanto agora éramos nós, os humanos, os donos da rua, nela levantando poeira. Algumas mães carregavam seus filhos pendurados às costas.

Já perto do micro-ônibus, percebi que ele estava lotado. Havia muita gente em pé. Que momento horrível: os índios com suas trouxas espremendo-se contra a porta do veículo, entulhada de cholas. Eu, com falta de oxigênio, fui sendo empurrado no meio da turba em seu movimento desvairado em direção à porta. É indescritível e difícil de acreditar, mas fui sendo levado quase como se não tocasse os pés no chão, espremido por todos os lados. Empurrado e imprensado até chegar à porta do veículo, quase rolei com um pião em câmara lenta e, zupt, vi-me dentro do ônibus como num passe de mágica. Havia muita gritaria do lado de fora, quando o motorista fechou a porta... e o veículo foi se movendo. Homens e mulheres esmurravam a frente do ônibus, a porta, e alcançavam as janelas, batendo, batendo. O ônibus já estava lotado antes de chegar, de modo que nós, que conseguimos entrar, ficamos em pé como sardinhas em lata.

Charge de um ônibus lotado como aquele de Tiahuanaco (Charge da internet).

.

A turba desatinada que não conseguiu embarcar, foi ficando para trás. Dentro do ônibus, era um tremendo aperto e o cheiro dos passageiros ou das trouxas parecia assemelhar-se a algum tipo de limão. Vi que ao lado esquerdo do motorista, isto é, entre o assento deste e a parede com janela, havia um banquinho no chão, sobre o qual ia sentado um índio de costas para a frente do ônibus. Sim, ele viajava espremido no canto. Pessoas sentaram-se nos degraus de entrada ao ônibus. Eu estava bem na frente e por sorte consegui agarrar-me num dos ferros logo atrás do motorista. Entre aquele que ia espremido ao lado do chofer e a primeira fila de dois assentos com três passageiros a ocupá-lo, havia outro banquinho de madeira com uns 30 centímetros de altura – de costas para a janela e bem abaixo dela – e nele iam sentados uma senhora mestiça (não era chola) ao lado de um jovem índio. Ela me olhou bem nos olhos. Acho que eu, por causa do 'soroche', devia estar com um aspecto de pessoa que estaria passando mal. Agora os passageiros, feitos sardinhas em lata, viajavam bem silenciosos. O barulho era só do motor do ônibus. E aquela senhora me perguntou, em bom espanhol, se eu não estava passando bem. Respondi a ela: 'El soroche, señora'. Ela fez então algo incrível: abriu um sorriso e com o próprio quadril empurrou o jovem que estava ao seu lado e disse-me: “Sente-se aqui”. Ao lado dela, havia espaço para uma só nádega. Sentei-me. Além de ficar metade no ar, não tinha onde pôr as pernas, que foram uma sobre as da citada senhora e a outra sob as do motorista. Aquele que ao meu lado esquerdo estava espremido ao lado do motorista, tinha as pernas encolhidas. Sei que não fui correto para com o jovem índio por aceitar que fosse desalojado, mas para quem estava praticamente precisando de um hospital e sem raciocinar com fluidez, não pude deixar de aproveitar a oportunidade de sentar-me. Disse a ele: 'Gracias', mas ele, indiferente, nada reclamou e nada respondeu.

E que motorista impassível! Havia gente sentada perto dos pedais do veículo, outros em pé apoiados sobre seus ombros, e ele parecia estar alheio a tudo. Acho que se trata de um índio curtido de muitas viagens iguais àquela.

Devo lembrar que também, lá pela metade do micro-ônibus, houve algum desentendimento entre passageiros e o começo de uma briga, mas que logo se amainou. Eu estava quase delirando e pensava em anular todo o resto da viagem, cancelando Peru, Chile, Argentina...

Entrando o ônibus em La Paz, levanto-me e fotografo a rua. Não sei se seria uma rápida nevada ou uma chuva de pedras. Por estar tomado pelo “soroche”, não me interessei em saber o que seria.

Cheguei vivo ao hotel, de onde telefonei ao Bernardo, contando como estava me sentindo. Logo depois Bernardo bateu à minha porta. Aluno do penúltimo ano de Medicina, examinou-me como um médico formado, coçou a cabeça e exclamou: 'Caramba'! Ele me medicou e em seguida levou-me a uma ‘confiteria’ a poucos metros do hotel, onde ambos tomaríamos um creme de maisena. O casal proprietário ficou consternado com minha história. Prepararam um creme muito especial, com folhas de coca. Foi a primeira vez que meu estômago aceitou algo em La Paz. Após o creme, veio um chá de coca. Sem dúvida, eu começo a livrar-me do soroche”.

-o-

 

Na 5ª PARTE desta narrativa, farei o relato de como sarei do "soroche" e passei a aproveitar a estada em La Paz, antes de partir rumo ao Peru.

-o-


Nenhum comentário:

Postar um comentário