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VIAGEM
PELA AMÉRICA DO SUL EM 1967
5ª PARTE
VENCIDO O “SOROCHE”, VIVA LA PAZ!
por Francisco Souto Neto
Esta é uma
transcrição do meu diário da viagem que fiz a vários países da América do Sul
em 1967, iniciada na semana em que completei 24 anos de idade. Passados 55
anos, é interessante observar os detalhes de como eram feitas as viagens
naquele tempo e as impressões que os lugares causaram a este então jovem viajante.
A transcrição do meu diário de viagem vai entre aspas, e quando eu achar
necessário intervir no texto, farei isto entre colchetes.
O ESPLENDOR DE LA PAZ E A DESPEDIDA DA BOLÍVIA
“A coca é uma linácea do gênero
‘erythorosyllo’. Originária do Peru, é hoje cultivada nos países andinos, na
Índia, em Java e no Ceilão. É proibida no Brasil, como todos sabemos. Na
Bolívia, entretanto, ela é indispensável à vida dos índios. O pé é da altura de
um homem e as folhas são pequenas, com forma oval e uma nervura no centro. O
gosto e o cheiro lembram o do chá, mas deixa amargor na boca e sensação
adstringente. Para os viciados é uma fonte de prazer: esquecem as dificuldades
cotidianas, a fome – se for o caso – e pela imaginação vivem os prazeres
recusados pelas dificuldades. O chá ‘assentou’ o meu estômago, produziu
sensação de aumento de força e deixou-me mais disposto para atividades. Por
curiosidade, tentei mascar coca nos dias posteriores, mas não gostei. O chá é
menos adstringente e mais recomendável aos turistas. Novamente fui cedo para o
meu hotel, mas desta feita dormi muito bem.
No dia 19 levantei-me e fui à
‘confiteria’ para tomar mais um creme de maisena e chá de coca. Mais tarde, na
hora do almoço, senti fome pela primeira vez. Fui a um ótimo restaurante na
Avenida Camacho e pedi algo que meu organismo me sugeria: uma simples sopa de
tomate com massinhas. Havia ali um conjunto musical que tocou Autumn Concerto, Too
Young, Tender is the Night e outras músicas americanas. Quando saí, eu era
outro: tinha superado a fase do ‘soroche’ e sentia-me adaptado à altitude.
Desde então, nunca mais fiquei doente e a partir daí comecei a ‘sentir’ La Paz.
Retornei ao hotel, onde havia combinado encontrar-me com Bernardo. Na portaria
fui informado de que naquela manhã o hotel recebera minha carta solicitando
reserva, que demorou meio mês para chegar ao destino. E era carta aérea registrada.
Bernardo chegou portando uma seringa com algum medicamento e ficou surpreso ao
constatar que eu tinha sarado. Fomos então explorar a cidade.
Visitamos o bairro elegante de
Miraflores e subimos a uma montanha a pé, de onde tiramos lindas fotos de La
Paz. Meus dólares, bem como os travaller’s checks, eu os levava numa ‘cinta de
dinheiro’ que pertence ao Sr. João Vargas de Oliveira. É que quando Dª
Argentina e ele souberam que eu iria fazer a longa viagem, fizeram questão de
emprestar-me a cinta. E durante toda a viagem, essa cinta foi utilíssima, pois
eu tenho estado sempre tranquilo, sem medo de que um ladrão enfie a mão em meu
bolso e leve todo o meu dinheiro. Eles foram muito atenciosos.
Fomos ao Museu Arqueológico e depois
ao Museu de Arqueologia ao ar livre, com monólitos de Tiahuanaco.
Despedindo-me de Bernardo, tomei um
táxi para ir à estação ferroviária. A tarifa fixa dos táxis de La Paz é
baixíssima: pode-se ir a qualquer parte da capital pelo equivalente a antigos
Cr$360 (NCr$0,36). O povo não admite uma majoração. Chegando à estação, comprei
passagem com destino a Cusco para o dia seguinte, assim: de litorina até
Guaqui, de navio atravessando o Titicaca durante uma noite inteira em camarote
com leito, até Puno no Peru, e depois de Puno até Cusco de trem! Na estação,
duas ‘chicas’ (garotas) conversavam ao meu lado, e uma delas disse à outra em
espanhol: ‘Ele é americano’, olhando para mim. A outra contestou: ‘Não. Ele é
francês’. Eu ri e disse-lhes em espanhol: ‘Soy brasileño’. Riram e conversamos
um tempão. Elas iriam para La Paz e assim terminou por ali o nosso contato. A
propósito, elas eram bonitas. Falo muito sobre as cholas, mas nem todas as
garotas vestem-se com trajes típicos como as cholas. Tal como as duas
referidas, muitas trajam-se à moda europeia, usam saltos altos e saias curtas,
mas não vi nenhuma moça de minissaia na Bolívia. Já as mulheres mais maduras
são às vezes muito elegantes, com chapéus tipo Hollywood, luvas, casacos de
peles e saltos altíssimos. Os homens vestem-se bem, mas às vezes calçam sapatos
pretos com meias brancas ou coloridas. As pessoas em geral me olhavam muito nas
ruas, talvez porque eu use roupas diferentes das deles. Ou, quem sabe, por
causa do meu cabelo, que estava grande demais, muito volumoso. Eu deveria ter cortado
mais curto antes de viajar.
O povo é muito educado e tratável.
Omitir um “por favor” é demonstrar rudeza e falta de educação. No Brasil acho
as pessoas meio grossas, pois gente desconhecida, na rua, às vezes pergunta:
“Você tem horas?”, ou apontando ao meu relógio: “Que horas são?”, ou “Sabe onde
fica a Rua Marechal Deodoro?”. Não sabem dizer “por favor”.
Em La Paz não existe vida noturna. O
cinema é o programa. Não há televisão. Existe uma boate, onde há espetáculo de
strip-tease, porém me disseram que a stripper é gorda demais e que o espetáculo
é de dar pena. Então economizei uns pesos bolivianos.
Dona Argentina Vargas havia me pedido que comprasse alguma coisa para ela, do meu gosto, até 50 dólares, que me reembolsaria. Após muita procura, optei por uma cigarreira de prata, pois as pratas na Bolívia são famosas no mundo inteiro e são muito baratas. Comprei uma trabalhada à mão com motivo da Porta do Sol e a imagem de Viracocha. Ela vai adorar.
Não vou registrar detalhes exagerados
das minhas atividades em La Paz. Vamos aos casos mais pitorescos. Por exemplo,
fui à Calle Sagárnaga, onde se concentra o comércio de cholas de La Paz. Achei
a Casa Flora, cuja proprietária, Flora, é a chola mais famosa do país. Nas
paredes, ela exibe fotografias que tirou com Libertad Lamarque, com o prefeito
da capital, com o presidente do Peru, com o embaixador dos Estados Unidos, com
Miss Bolívia, com príncipes e com atrizes famosas. É claro que também tirei uma
foto com ela. É uma senhora gorduchona que gosta de exibir os brilhantes
(verdadeiros) que usa. Flora é muito simpática. Comprei na sua loja souvenirs,
tais como reproduções dos monólitos de Tiahuanaco, a máscara de el diablo e um
lluchu.
Nos restaurantes, e dizem que também
em casas particulares, não há colher ou concha para o açucareiro; cada pessoa
serve o açúcar com a sua própria. Num banco que visitei, vi uma tabuleta que
dizia: “Venta talonários de cheques”; descobri então que o cliente precisa
pagar pelo seu talão de cheques. Quando contei à funcionária no banco que no
Brasil os cheques são gratuitos, ela levantou as sobrancelhas de espanto. Fui
também a um Ministério muito distante da cidade (felizmente os táxis são lindos
e baratos) para pegar o visto de saída da Bolívia. Depois passei pela embaixada
do Peru e apanhei o visto de entrada àquele país. Meu passaporte está ficando
todo enfeitado de carimbos. A propósito, qual seria a pessoa que me disse que
‘não precisava de passaporte’ para se viajar pela América do Sul?
Interessante foi conhecer a Calle de
las Brujas (Rua das Bruxas). Ali as velhas cholas sentam-se ao lado da sua
mercadoria, de costas para as paredes empenadas, e vendem o bem e o mal. Para
curar uma dor de garganta, um caso de amor, uma coceira, para realizar com
sucesso algum negócio, basta comprar das ‘brujas’ um embrulhinho ‘encantado’,
cheio de pedrinhas coloridas, docinhos, plantinhas, ossinhos... e com eles a
proteção das forças ocultas. Para resolverem-se problemas maiores, vendem
cabeças de ovelhas e fetos de lhamas. Claro que fotografei essas senhoras com
sua bizarra mercadoria.
Pensei que as guerrilhas
repercutissem muito em La Paz, mas qual nada! Ninguém fala acerca de
guerrilhas. Há apenas algumas manifestações políticas escritas à tinta nos
muros e também papéis impressos grudados nas paredes.
Despedi-me de Bernardo, que foi
muitíssimo gentil durante minha estada em La Paz, e pedi-lhe transmitir beijos
à sua irmã e sua Mamãe. Fui dormir feliz por ter conhecido uma cidade tão
interessante. No dia seguinte eu iria ampliar a minha grande aventura: viajaria
de litorina até ao limite da Bolívia, atravessaria o Lago Titicaca de navio e
chegando a Puno, no Peru, faria uma viagem de trem até Cusco.
[Devo salientar que o nome da antiga
capital dos Incas era grafada com z: Cuzco. Foi assim que usei grafar a palavra
durante muitos e muitos anos. Agora o correto passou a ser com s: Cusco. Portanto,
atualizo-me na 6ª PARTE desta odisseia de 1967.]
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