quinta-feira, 10 de março de 2022

VIAGEM PELA AMÉRICA DO SUL EM 1967 - 5ª PARTE - VENCIDO O “SOROCHE”, VIVA LA PAZ! por Francisco Souto Neto

  
Francisco Souto Neto com Flora, a mais famosa chola do país, que gosta de alardear sua riqueza, mostrando ostensivamente seus anéis de brilhantes (autênticos!)

 

Comendador Francisco Souto Neto

 

---------o--------

 

VIAGEM PELA AMÉRICA DO SUL EM 1967

5ª PARTE

VENCIDO O “SOROCHE”, VIVA LA PAZ!

 

por  Francisco Souto Neto

 

Esta é uma transcrição do meu diário da viagem que fiz a vários países da América do Sul em 1967, iniciada na semana em que completei 24 anos de idade. Passados 55 anos, é interessante observar os detalhes de como eram feitas as viagens naquele tempo e as impressões que os lugares causaram a este então jovem viajante. A transcrição do meu diário de viagem vai entre aspas, e quando eu achar necessário intervir no texto, farei isto entre colchetes.

 

O ESPLENDOR DE LA PAZ E A DESPEDIDA DA BOLÍVIA

 

“A coca é uma linácea do gênero ‘erythorosyllo’. Originária do Peru, é hoje cultivada nos países andinos, na Índia, em Java e no Ceilão. É proibida no Brasil, como todos sabemos. Na Bolívia, entretanto, ela é indispensável à vida dos índios. O pé é da altura de um homem e as folhas são pequenas, com forma oval e uma nervura no centro. O gosto e o cheiro lembram o do chá, mas deixa amargor na boca e sensação adstringente. Para os viciados é uma fonte de prazer: esquecem as dificuldades cotidianas, a fome – se for o caso – e pela imaginação vivem os prazeres recusados pelas dificuldades. O chá ‘assentou’ o meu estômago, produziu sensação de aumento de força e deixou-me mais disposto para atividades. Por curiosidade, tentei mascar coca nos dias posteriores, mas não gostei. O chá é menos adstringente e mais recomendável aos turistas. Novamente fui cedo para o meu hotel, mas desta feita dormi muito bem.

No dia 19 levantei-me e fui à ‘confiteria’ para tomar mais um creme de maisena e chá de coca. Mais tarde, na hora do almoço, senti fome pela primeira vez. Fui a um ótimo restaurante na Avenida Camacho e pedi algo que meu organismo me sugeria: uma simples sopa de tomate com massinhas. Havia ali um conjunto musical que tocou Autumn Concerto, Too Young, Tender is the Night e outras músicas americanas. Quando saí, eu era outro: tinha superado a fase do ‘soroche’ e sentia-me adaptado à altitude. Desde então, nunca mais fiquei doente e a partir daí comecei a ‘sentir’ La Paz. Retornei ao hotel, onde havia combinado encontrar-me com Bernardo. Na portaria fui informado de que naquela manhã o hotel recebera minha carta solicitando reserva, que demorou meio mês para chegar ao destino. E era carta aérea registrada. Bernardo chegou portando uma seringa com algum medicamento e ficou surpreso ao constatar que eu tinha sarado. Fomos então explorar a cidade.

Eu fotografo Bernardo, irmão do Sr. Renan Castellon, na Praça onde foi fundada La Paz.

Do alto de uma montanha, Bernardo fotografa-me enquanto aprecio o panorama de La Paz.

Visitamos o bairro elegante de Miraflores e subimos a uma montanha a pé, de onde tiramos lindas fotos de La Paz. Meus dólares, bem como os travaller’s checks, eu os levava numa ‘cinta de dinheiro’ que pertence ao Sr. João Vargas de Oliveira. É que quando Dª Argentina e ele souberam que eu iria fazer a longa viagem, fizeram questão de emprestar-me a cinta. E durante toda a viagem, essa cinta foi utilíssima, pois eu tenho estado sempre tranquilo, sem medo de que um ladrão enfie a mão em meu bolso e leve todo o meu dinheiro. Eles foram muito atenciosos.

Fomos ao Museu Arqueológico e depois ao Museu de Arqueologia ao ar livre, com monólitos de Tiahuanaco.

Bernardo Castellón, estudante de Medicina, leva-me do Museu Arqueológico ao ar livre.

Francisco Souto Neto no Museu Arqueológico ao ar livre em La Paz.

Bernardo Castellon no Museu Arqueológico ao ar livre em La Paz.

Francisco Souto Neto no Museu Arqueológico ao ar livre em La Paz.

Francisco Souto Neto no Museu Arqueológico ao ar livre em La Paz.

Despedindo-me de Bernardo, tomei um táxi para ir à estação ferroviária. A tarifa fixa dos táxis de La Paz é baixíssima: pode-se ir a qualquer parte da capital pelo equivalente a antigos Cr$360 (NCr$0,36). O povo não admite uma majoração. Chegando à estação, comprei passagem com destino a Cusco para o dia seguinte, assim: de litorina até Guaqui, de navio atravessando o Titicaca durante uma noite inteira em camarote com leito, até Puno no Peru, e depois de Puno até Cusco de trem! Na estação, duas ‘chicas’ (garotas) conversavam ao meu lado, e uma delas disse à outra em espanhol: ‘Ele é americano’, olhando para mim. A outra contestou: ‘Não. Ele é francês’. Eu ri e disse-lhes em espanhol: ‘Soy brasileño’. Riram e conversamos um tempão. Elas iriam para La Paz e assim terminou por ali o nosso contato. A propósito, elas eram bonitas. Falo muito sobre as cholas, mas nem todas as garotas vestem-se com trajes típicos como as cholas. Tal como as duas referidas, muitas trajam-se à moda europeia, usam saltos altos e saias curtas, mas não vi nenhuma moça de minissaia na Bolívia. Já as mulheres mais maduras são às vezes muito elegantes, com chapéus tipo Hollywood, luvas, casacos de peles e saltos altíssimos. Os homens vestem-se bem, mas às vezes calçam sapatos pretos com meias brancas ou coloridas. As pessoas em geral me olhavam muito nas ruas, talvez porque eu use roupas diferentes das deles. Ou, quem sabe, por causa do meu cabelo, que estava grande demais, muito volumoso. Eu deveria ter cortado mais curto antes de viajar.

O povo é muito educado e tratável. Omitir um “por favor” é demonstrar rudeza e falta de educação. No Brasil acho as pessoas meio grossas, pois gente desconhecida, na rua, às vezes pergunta: “Você tem horas?”, ou apontando ao meu relógio: “Que horas são?”, ou “Sabe onde fica a Rua Marechal Deodoro?”. Não sabem dizer “por favor”.

Em La Paz não existe vida noturna. O cinema é o programa. Não há televisão. Existe uma boate, onde há espetáculo de strip-tease, porém me disseram que a stripper é gorda demais e que o espetáculo é de dar pena. Então economizei uns pesos bolivianos.

Dona Argentina Vargas havia me pedido que comprasse alguma coisa para ela, do meu gosto, até 50 dólares, que me reembolsaria. Após muita procura, optei por uma cigarreira de prata, pois as pratas na Bolívia são famosas no mundo inteiro e são muito baratas. Comprei uma trabalhada à mão com motivo da Porta do Sol e a imagem de Viracocha. Ela vai adorar.

Na Calle Sagárgana, fotografo Flora, a chola mais famosa do país.

Flora tem fotos ao lado de príncipes, de presidentes de países, de artistas de Hollywood, todas na parede de sua loja. Ela gosta de exibir seus enormes brilhantes, símbolos de sua riqueza e sucesso. Claro que tirei uma foto ao seu lado.

Não vou registrar detalhes exagerados das minhas atividades em La Paz. Vamos aos casos mais pitorescos. Por exemplo, fui à Calle Sagárnaga, onde se concentra o comércio de cholas de La Paz. Achei a Casa Flora, cuja proprietária, Flora, é a chola mais famosa do país. Nas paredes, ela exibe fotografias que tirou com Libertad Lamarque, com o prefeito da capital, com o presidente do Peru, com o embaixador dos Estados Unidos, com Miss Bolívia, com príncipes e com atrizes famosas. É claro que também tirei uma foto com ela. É uma senhora gorduchona que gosta de exibir os brilhantes (verdadeiros) que usa. Flora é muito simpática. Comprei na sua loja souvenirs, tais como reproduções dos monólitos de Tiahuanaco, a máscara de el diablo e um lluchu.

Nos restaurantes, e dizem que também em casas particulares, não há colher ou concha para o açucareiro; cada pessoa serve o açúcar com a sua própria. Num banco que visitei, vi uma tabuleta que dizia: “Venta talonários de cheques”; descobri então que o cliente precisa pagar pelo seu talão de cheques. Quando contei à funcionária no banco que no Brasil os cheques são gratuitos, ela levantou as sobrancelhas de espanto. Fui também a um Ministério muito distante da cidade (felizmente os táxis são lindos e baratos) para pegar o visto de saída da Bolívia. Depois passei pela embaixada do Peru e apanhei o visto de entrada àquele país. Meu passaporte está ficando todo enfeitado de carimbos. A propósito, qual seria a pessoa que me disse que ‘não precisava de passaporte’ para se viajar pela América do Sul?

Interessante foi conhecer a Calle de las Brujas (Rua das Bruxas). Ali as velhas cholas sentam-se ao lado da sua mercadoria, de costas para as paredes empenadas, e vendem o bem e o mal. Para curar uma dor de garganta, um caso de amor, uma coceira, para realizar com sucesso algum negócio, basta comprar das ‘brujas’ um embrulhinho ‘encantado’, cheio de pedrinhas coloridas, docinhos, plantinhas, ossinhos... e com eles a proteção das forças ocultas. Para resolverem-se problemas maiores, vendem cabeças de ovelhas e fetos de lhamas. Claro que fotografei essas senhoras com sua bizarra mercadoria.

A Rua das Bruxas, onde elas vendem o bem e o mal. Na porta, uma bruxa.

A chola bruxa atendendo sua freguesa.

Pensei que as guerrilhas repercutissem muito em La Paz, mas qual nada! Ninguém fala acerca de guerrilhas. Há apenas algumas manifestações políticas escritas à tinta nos muros e também papéis impressos grudados nas paredes.

Despedi-me de Bernardo, que foi muitíssimo gentil durante minha estada em La Paz, e pedi-lhe transmitir beijos à sua irmã e sua Mamãe. Fui dormir feliz por ter conhecido uma cidade tão interessante. No dia seguinte eu iria ampliar a minha grande aventura: viajaria de litorina até ao limite da Bolívia, atravessaria o Lago Titicaca de navio e chegando a Puno, no Peru, faria uma viagem de trem até Cusco.

[Devo salientar que o nome da antiga capital dos Incas era grafada com z: Cuzco. Foi assim que usei grafar a palavra durante muitos e muitos anos. Agora o correto passou a ser com s: Cusco. Portanto, atualizo-me na 6ª PARTE desta odisseia de 1967.]

-o-

 
Francisco Souto Neto em 2021, quase 55 após a viagem pela América do Sul, em sua casa, em tempo de pandemia, mas discretamente comemorando seus 78 anos.

-o- 

Nenhum comentário:

Postar um comentário