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VIAGEM
PELA AMÉRICA DO SUL EM 1967
2ª PARTE
A CHEGADA A LA PAZ e O MAL DA
MONTANHA (“EL SOROCHE”)
por Francisco Souto Neto
Esta é uma transcrição do meu diário
da viagem que fiz a vários países da América do Sul em 1967, iniciada na semana
em que completei 24 anos de idade. Passados 55 anos, é interessante observar os
detalhes de como eram feitas as viagens naquele tempo e as impressões que os
lugares causaram a este então jovem viajante. A transcrição do meu diário de
viagem vai entre aspas, e quando eu achar necessário intervir no texto, farei
isto entre colchetes.
PRIMEIRAS IMPRESSÕES DE LA PAZ NO ANO 1967
“O avião do Lloyd Aéreo
Boliviano tocou o solo de La Paz às 16:30 horas, após uma viagem desagradável
devido aos ‘solavancos’ do DC-6B, que na última meia hora foram violentos e só
suportáveis devido à beleza do panorama. Quando abriram a porta, o avião foi
invadido pelo frio. A aeromoça colocou u’a manta sobre os ombros e nós,
passageiros, vestimos nossos agasalhos. O meu sobretudo, que eu trazia no
braço, não foi suficiente para que eu não tiritasse. Uma bela moça atirou a
cabeça para trás e exclamou com alívio: ‘Ah, el aire!’. É que o aeroporto está
situado a 4.000 metros de altitude e por isso a pista tem muitos quilômetros de
extensão, para que o avião possa levantar-se em ar tão rarefeito. Tomei um
ônibus por gentileza do Lloyd Aéreo Boliviano que me conduziu à cidade. Eu
observava que eram pobres os indícios de que estivéssemos próximos a uma grande
cidade e o solo era pouco fértil, quase desértico. Às vezes passava uma tropa
de burros à beira da estrada, guiadas por índios que andavam lentamente. Eles
trazem na cabeça uns bonés bicudos, os ‘lluchos’, e cobrem-se com ponchos
curtos. De repente surgiu sobre a estrada um grande portão em arco, com
propaganda da Coca Cola, dizendo: BIENVENIDO A LA PAZ. Mas onde estaria a capital,
que eu não a via? Ao transpor o arco, a cidade, enorme, literalmente explode no
fundo de uma gigantesca cratera 860 metros abaixo. Eu me senti entrar em outro
mundo. A estrada é de cimento, cheia de curvas e as casas têm os telhados de
zinco. Além da cratera, no horizonte distante, vê-se o Illimani, com quase
7.000 metros de altitude, coberto de neves eternas, com reflexos cintilantes,
róseos, de beleza rara. É o guardião de La Paz, uma das mais belas montanhas do
mundo. A mim parece uma montanha de cristal. Sendo recoberto de neve e gelo,
muitas vezes torna o frio mais intenso
na capital, mas por outro lado ele serve como um anteparo natural aos furiosos
ventos que varrem a Cordilheira dos Andes.
A descida de El Alto até ao
centro de La Paz dura mais de meia hora. Passei a notar que as mulheres têm os
traços indígenas de seus ancestrais aimaras, são gordas, usam várias saias ao
mesmo tempo, que são coloridas e rodadas, e no alto da cabeça ostentam
invariavelmente um chapéu coco, de onde escorre uma trança fina e comprida. São
chamadas ‘cholas’, e são elas que mandam na família e dominam o comércio.
Parece-me que os maridos dedicam-se à política, mas via de regra seguem o
político da preferência da sua chola.
O ônibus do Lloyd Aéreo Boliviano
deixou-me num ponto qualquer de La Paz, onde tomei um táxi e pedi ao chofer que
me levasse ao Hotel Avenida, onde eu teria uma reserva. Espantei-me com os
táxis, luxuosos e enormes: são carros Impalla, Mercedes, Mustang, Galaxie,
Fairlaine... todos eles ‘último tipo’. É uma loucura que os táxis em La Paz
sejam tão chiques. Parece-me que se o carro é comprado para ser táxi durante
pelo menos um ano, não paga os impostos. E assim, todo ano o taxista compra um
novo e fabuloso automóvel.
Cheguei ao Hotel Avenida,
muito bem localizado, mas... não haviam recebido a minha solicitação de
reserva, que eu expedira em carta registrada há mais de 10 dias. Contudo havia
acomodação disponível, de modo que não tive problema. Era um hotel considerado
econômico, porém o meu apartamento era amplo, com bom banheiro e com um
aparelho mais moderno que o telefone, pelo qual eu poderia comunicar-me com a
portaria [sic]. Tomei um delicioso banho e jantei num restaurante japonês. Em
seguida peguei um táxi e rumei para a casa de Bernardo, irmão do Sr. Renán
Castellón, que reside em Ponta Grossa. Eu levava um rolo de fita magnética a
Bernardo, pois esta é a correspondência originalíssima usada pelos Castellón.
Chegando ao endereço correto, gostei muito de conhecer Bernardo, sua mãe e
irmã, pessoas muito finas e simpáticas. Porém, durante a visita, notei que eu
não estava me sentindo bem, e me parece que não tinha vontade de conversar. Eu
olhava para o chão... e o via tremer. Quando andava, era como se estivesse
pisando sobre uma camada de borracha. Pensei que aquilo poderia ser ainda
reminiscência do enjoo na viagem aérea, ou talvez eu estivesse mesmo cansado.
Só no dia seguinte eu perceberia estar sofrendo do ‘mal da montanha’... ou
‘soroche’. Mais adiante explicarei com detalhes.
Resolvi retornar ao meu hotel.
Tomei um táxi. Em La Paz [em 1967] o táxi vai pegando mais passageiros pelo
caminho, desde que queiram ir para um mesmo lado da cidade. O motorista os
deixa em seus destinos, conforme a conveniência do trajeto. Estranho costume!
Quando contei ao motorista que no Brasil um só passageiro tem o direito a
exclusividade no táxi, ele repetiu incrédulo: ‘Pero... solo uno?’. E
perguntou-me onde eu havia aprendido a falar ‘tão bem’ o espanhol. A propósito,
perguntas idênticas ouvi em todos os países por onde passei. Creio que devo isso
às aulas que tive com o Prof. Paschoal Salles Rosa, à minha leitura habitual da
Life em Español e ao meu próprio interesse no idioma.
Jantei qualquer coisa no
hotel. Continuava sentindo-me miseravelmente, muito indisposto. Dormi mal e
tive horríveis pesadelos.
Na manhã seguinte a
temperatura em meu apartamento estava a 11 graus. Embora continuasse
indisposto, forcei-me a sair para ver a cidade. Fui à Igreja de São Francisco,
que me deixou muito bem impressionado, com o altar coberto de ouro. Numa rua próxima,
ocorria uma pitoresca procissão de cholas na qual entrava muito confete. Elas
carregam às costas suas compras ou os filhos.
A cidade é limpa. Cheia de
ladeiras, só é plana na estreita região do Rio Choqueyapú. Visitei rapidamente
a Universidade e os Palácios da Justiça e do Congresso. Em frente a eles há uma
praça e eu sabia que num dos postes foi pendurado o presidente assassinado na
revolução de 1946. Há inscrições na base do poste, tais como ‘No soy enemigo de
los ricos, pero soy mas amigo de los pobres’, ‘Sacrificado por la oligarquia’,
‘El 21 de julio de 1946 no fué em vano’, ‘El capitán
no abandona su barco en la tormenta’.
O povo boliviano é
extremamente atencioso. Quando eu pedia uma informação na rua, eles pegavam-me
pelo braço e levavam-me aos locais onde eu desejava chegar. E sempre que pedi
para alguém fotografar-me com minha câmera, sempre fui atendido com grande
simpatia.
Eu continuava sentindo-me
terrivelmente mal. Entrei num restaurante, mas saí precipidamente porque o
cheiro de comida me provocava náuseas. Ainda assim, fui ao Mercado Camacho,
originalíssimo: as cholas colocam sua mercadoria – frutas, legumes, carnes, peixes
– sobre enormes caixas e sentam-se sobre suas próprias pernas no meio daquelas
coisas. ‘Si no lo tomas, no lo toques’, repetem zangadas e peremptórias.
Agora bastava eu andar um
pouco para me sentir mal. Eu já havia percebido, pelo que lera ainda quando no
Brasil: minhas inexplicáveis indisposições ocorriam porque eu estava doente,
assim como quase a totalidade dos turistas que chegam a La Paz: eu devia estar
sofrendo do ‘mal das alturas’ (ou ‘mal da montanha’), isto é, ‘el soroche’. Eis
a explicação: La Paz é a mais alta capital do mundo, superior a Lhassa no
Tibet. O turista não habituado à altura sofre os efeitos: imensa sensação de
fadiga, invencível e intensa a ponto de fazer a pessoa perder o interesse pelo
ambiente e quase a ação sobre o corpo. Além do enjoo, eu tinha a sensação de
completo relaxamento e de braços e pernas abandonados, embora o cérebro
continuasse em normal atividade. O pior eram as náuseas. Já eram 17:00 horas e
eu não suportava imaginar-me comendo algo. Resolvi acatar a sugestão da
portaria do hotel: comprar folhas de coca para tomar chá da planta. Pensei em
sair em busca do vegetal, mas fiquei antes repousando um pouco na minha cama,
quando tocou o telefone. Era Bernardo Castellón, combinando para levar-me em
seu carro à casa do casal Mabel Rivera e Mário Castro. Ela é declamadora
profissional e ele, diretor de uma rádio. Eu levava mensagens a eles, do casal
Renán Castellón de Ponta Grossa, através de fita magnética de gravador.
Bernardo foi buscar-me no hotel e fomos à casa dos Castro. Achei o casal
muitíssimo simpático. Eles são refinados e cultos. Mas ficamos menos de meia
hora e Bernardo, sabendo de meu estado, levou-me de volta ao hotel. Bernardo é
estudante de Medicina, já no penúltimo ano, e medicou-me. Tomei os remédios com
avidez e fui me deitar. Eram apenas 19 horas e eu continuava enjoado. E assim,
vestido, adormeci e tive outra noite com pesadelos.
O dia seguinte, 18, foi o meu
pior dia e, paradoxalmente, o mais bonito durante minha estada na Bolívia. É
que fui visitar as ruínas de Tiahuanaco, onde viveram os kollas 8.000 anos
antes de Cristo”.
Aqui interrompo a transcrição
do meu diário da viagem de 1967 e prosseguirei na 3ª
PARTE deste blog. Além de relatar a minha incrível visita a Tiahuanaco,
contarei como consegui vencer o “mal da montanha”. E ainda fiz mais passeios
por La Paz, agora a convite de Bernardo Castellón.
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