domingo, 6 de março de 2022

VIAGEM PELA AMÉRICA DO SUL EM 1967 - 2ª PARTE - A CHEGADA A LA PAZ e O MAL DA MONTANHA (“EL SOROCHE”), por Francisco Souto Neto.


Francisco Souto Neto ao lado de uma triste lembrança do país: o poste onde foi pendurado o presidente da República, assassinado em 21 de julho de 1946.

 

Comendador Francisco Souto Neto

 

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VIAGEM PELA AMÉRICA DO SUL EM 1967

2ª PARTE

A CHEGADA A LA PAZ e O MAL DA MONTANHA (“EL SOROCHE”)

por  Francisco Souto Neto

 

Esta é uma transcrição do meu diário da viagem que fiz a vários países da América do Sul em 1967, iniciada na semana em que completei 24 anos de idade. Passados 55 anos, é interessante observar os detalhes de como eram feitas as viagens naquele tempo e as impressões que os lugares causaram a este então jovem viajante. A transcrição do meu diário de viagem vai entre aspas, e quando eu achar necessário intervir no texto, farei isto entre colchetes.

 PRIMEIRAS IMPRESSÕES DE LA PAZ NO ANO 1967

“O avião do Lloyd Aéreo Boliviano tocou o solo de La Paz às 16:30 horas, após uma viagem desagradável devido aos ‘solavancos’ do DC-6B, que na última meia hora foram violentos e só suportáveis devido à beleza do panorama. Quando abriram a porta, o avião foi invadido pelo frio. A aeromoça colocou u’a manta sobre os ombros e nós, passageiros, vestimos nossos agasalhos. O meu sobretudo, que eu trazia no braço, não foi suficiente para que eu não tiritasse. Uma bela moça atirou a cabeça para trás e exclamou com alívio: ‘Ah, el aire!’. É que o aeroporto está situado a 4.000 metros de altitude e por isso a pista tem muitos quilômetros de extensão, para que o avião possa levantar-se em ar tão rarefeito. Tomei um ônibus por gentileza do Lloyd Aéreo Boliviano que me conduziu à cidade. Eu observava que eram pobres os indícios de que estivéssemos próximos a uma grande cidade e o solo era pouco fértil, quase desértico. Às vezes passava uma tropa de burros à beira da estrada, guiadas por índios que andavam lentamente. Eles trazem na cabeça uns bonés bicudos, os ‘lluchos’, e cobrem-se com ponchos curtos. De repente surgiu sobre a estrada um grande portão em arco, com propaganda da Coca Cola, dizendo: BIENVENIDO A LA PAZ. Mas onde estaria a capital, que eu não a via? Ao transpor o arco, a cidade, enorme, literalmente explode no fundo de uma gigantesca cratera 860 metros abaixo. Eu me senti entrar em outro mundo. A estrada é de cimento, cheia de curvas e as casas têm os telhados de zinco. Além da cratera, no horizonte distante, vê-se o Illimani, com quase 7.000 metros de altitude, coberto de neves eternas, com reflexos cintilantes, róseos, de beleza rara. É o guardião de La Paz, uma das mais belas montanhas do mundo. A mim parece uma montanha de cristal. Sendo recoberto de neve e gelo, muitas vezes  torna o frio mais intenso na capital, mas por outro lado ele serve como um anteparo natural aos furiosos ventos que varrem a Cordilheira dos Andes.

A descida de El Alto até ao centro de La Paz dura mais de meia hora. Passei a notar que as mulheres têm os traços indígenas de seus ancestrais aimaras, são gordas, usam várias saias ao mesmo tempo, que são coloridas e rodadas, e no alto da cabeça ostentam invariavelmente um chapéu coco, de onde escorre uma trança fina e comprida. São chamadas ‘cholas’, e são elas que mandam na família e dominam o comércio. Parece-me que os maridos dedicam-se à política, mas via de regra seguem o político da preferência da sua chola.

O ônibus do Lloyd Aéreo Boliviano deixou-me num ponto qualquer de La Paz, onde tomei um táxi e pedi ao chofer que me levasse ao Hotel Avenida, onde eu teria uma reserva. Espantei-me com os táxis, luxuosos e enormes: são carros Impalla, Mercedes, Mustang, Galaxie, Fairlaine... todos eles ‘último tipo’. É uma loucura que os táxis em La Paz sejam tão chiques. Parece-me que se o carro é comprado para ser táxi durante pelo menos um ano, não paga os impostos. E assim, todo ano o taxista compra um novo e fabuloso automóvel.

Cheguei ao Hotel Avenida, muito bem localizado, mas... não haviam recebido a minha solicitação de reserva, que eu expedira em carta registrada há mais de 10 dias. Contudo havia acomodação disponível, de modo que não tive problema. Era um hotel considerado econômico, porém o meu apartamento era amplo, com bom banheiro e com um aparelho mais moderno que o telefone, pelo qual eu poderia comunicar-me com a portaria [sic]. Tomei um delicioso banho e jantei num restaurante japonês. Em seguida peguei um táxi e rumei para a casa de Bernardo, irmão do Sr. Renán Castellón, que reside em Ponta Grossa. Eu levava um rolo de fita magnética a Bernardo, pois esta é a correspondência originalíssima usada pelos Castellón. Chegando ao endereço correto, gostei muito de conhecer Bernardo, sua mãe e irmã, pessoas muito finas e simpáticas. Porém, durante a visita, notei que eu não estava me sentindo bem, e me parece que não tinha vontade de conversar. Eu olhava para o chão... e o via tremer. Quando andava, era como se estivesse pisando sobre uma camada de borracha. Pensei que aquilo poderia ser ainda reminiscência do enjoo na viagem aérea, ou talvez eu estivesse mesmo cansado. Só no dia seguinte eu perceberia estar sofrendo do ‘mal da montanha’... ou ‘soroche’. Mais adiante explicarei com detalhes.

Resolvi retornar ao meu hotel. Tomei um táxi. Em La Paz [em 1967] o táxi vai pegando mais passageiros pelo caminho, desde que queiram ir para um mesmo lado da cidade. O motorista os deixa em seus destinos, conforme a conveniência do trajeto. Estranho costume! Quando contei ao motorista que no Brasil um só passageiro tem o direito a exclusividade no táxi, ele repetiu incrédulo: ‘Pero... solo uno?’. E perguntou-me onde eu havia aprendido a falar ‘tão bem’ o espanhol. A propósito, perguntas idênticas ouvi em todos os países por onde passei. Creio que devo isso às aulas que tive com o Prof. Paschoal Salles Rosa, à minha leitura habitual da Life em Español e ao meu próprio interesse no idioma.

Jantei qualquer coisa no hotel. Continuava sentindo-me miseravelmente, muito indisposto. Dormi mal e tive horríveis pesadelos.

Na manhã seguinte a temperatura em meu apartamento estava a 11 graus. Embora continuasse indisposto, forcei-me a sair para ver a cidade. Fui à Igreja de São Francisco, que me deixou muito bem impressionado, com o altar coberto de ouro. Numa rua próxima, ocorria uma pitoresca procissão de cholas na qual entrava muito confete. Elas carregam às costas suas compras ou os filhos.


Eu em frente à Catedral.

A Igreja de São Francisco.

À porta da Catedral.

Eu em frente ao Palácio do Governo.

Procissão de cholas.

A cidade é limpa. Cheia de ladeiras, só é plana na estreita região do Rio Choqueyapú. Visitei rapidamente a Universidade e os Palácios da Justiça e do Congresso. Em frente a eles há uma praça e eu sabia que num dos postes foi pendurado o presidente assassinado na revolução de 1946. Há inscrições na base do poste, tais como ‘No soy enemigo de los ricos, pero soy mas amigo de los pobres’, ‘Sacrificado por la oligarquia’, ‘El 21 de julio de 1946 no fué em vano’, ‘El capitán no abandona su barco en la tormenta’.


Francisco Souto Neto ao lado do poste onde foi pendurado o presidente da República assassinado. Placas de bronze fixadas na base do poste fazem alusão aos tristes acontecimento de 1946.

O povo boliviano é extremamente atencioso. Quando eu pedia uma informação na rua, eles pegavam-me pelo braço e levavam-me aos locais onde eu desejava chegar. E sempre que pedi para alguém fotografar-me com minha câmera, sempre fui atendido com grande simpatia.

Francisco Souto Neto entre La Merced e o Mercado de Flores.

Francisco Souto Neto em frente a um museu que visitou.

Eu continuava sentindo-me terrivelmente mal. Entrei num restaurante, mas saí precipidamente porque o cheiro de comida me provocava náuseas. Ainda assim, fui ao Mercado Camacho, originalíssimo: as cholas colocam sua mercadoria – frutas, legumes, carnes, peixes – sobre enormes caixas e sentam-se sobre suas próprias pernas no meio daquelas coisas. ‘Si no lo tomas, no lo toques’, repetem zangadas e peremptórias.

No Mercado Camacho, as cholas ficam no meio da mercadoria exposta, de onde alcançam tudo para entregar ao eventual comprador.

As cholas não gostam de ser fotografadas. Ao verem uma máquina fotográfica, dão as costas.

Agora bastava eu andar um pouco para me sentir mal. Eu já havia percebido, pelo que lera ainda quando no Brasil: minhas inexplicáveis indisposições ocorriam porque eu estava doente, assim como quase a totalidade dos turistas que chegam a La Paz: eu devia estar sofrendo do ‘mal das alturas’ (ou ‘mal da montanha’), isto é, ‘el soroche’. Eis a explicação: La Paz é a mais alta capital do mundo, superior a Lhassa no Tibet. O turista não habituado à altura sofre os efeitos: imensa sensação de fadiga, invencível e intensa a ponto de fazer a pessoa perder o interesse pelo ambiente e quase a ação sobre o corpo. Além do enjoo, eu tinha a sensação de completo relaxamento e de braços e pernas abandonados, embora o cérebro continuasse em normal atividade. O pior eram as náuseas. Já eram 17:00 horas e eu não suportava imaginar-me comendo algo. Resolvi acatar a sugestão da portaria do hotel: comprar folhas de coca para tomar chá da planta. Pensei em sair em busca do vegetal, mas fiquei antes repousando um pouco na minha cama, quando tocou o telefone. Era Bernardo Castellón, combinando para levar-me em seu carro à casa do casal Mabel Rivera e Mário Castro. Ela é declamadora profissional e ele, diretor de uma rádio. Eu levava mensagens a eles, do casal Renán Castellón de Ponta Grossa, através de fita magnética de gravador. Bernardo foi buscar-me no hotel e fomos à casa dos Castro. Achei o casal muitíssimo simpático. Eles são refinados e cultos. Mas ficamos menos de meia hora e Bernardo, sabendo de meu estado, levou-me de volta ao hotel. Bernardo é estudante de Medicina, já no penúltimo ano, e medicou-me. Tomei os remédios com avidez e fui me deitar. Eram apenas 19 horas e eu continuava enjoado. E assim, vestido, adormeci e tive outra noite com pesadelos.

O dia seguinte, 18, foi o meu pior dia e, paradoxalmente, o mais bonito durante minha estada na Bolívia. É que fui visitar as ruínas de Tiahuanaco, onde viveram os kollas 8.000 anos antes de Cristo”.

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Aqui interrompo a transcrição do meu diário da viagem de 1967 e prosseguirei na 3ª PARTE deste blog. Além de relatar a minha incrível visita a Tiahuanaco, contarei como consegui vencer o “mal da montanha”. E ainda fiz mais passeios por La Paz, agora a convite de Bernardo Castellón.

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Francisco Souto Neto aos 78 anos, durante a pandemia do coronavírus, em Curitiba, 55 anos após ter escrito os textos que estão sendo transcritos neste blog.

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