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VIAGEM PELA AMÉRICA DO SUL EM 1967
13ª PARTE
PARQUE NACIONAL DE PACHACAMAC
E O VOO DE LIMA A SANTIAGO
SOBRE O OCEANO PACÍFICO
por Francisco Souto Neto
Esta é uma
transcrição do meu diário da viagem que fiz a vários países da América do Sul
em 1967, iniciada na semana em que completei 24 anos de idade. Passados 55
anos, é interessante observar os detalhes de como eram feitas as viagens
naquele tempo e as impressões que os lugares causaram a este então jovem
viajante. A transcrição do meu diário de viagem vai entre aspas, e quando eu
achar necessário intervir no texto, farei isto entre colchetes.
PARQUE NACIONAL DE PACHACAMAC
“O meu maior interesse arqueológico
nas imediações de Lima era o Parque Nacional de Pachacamac. Acordei-me muito
cedo e tomei um táxi (um maravilhoso Impala 1967) em direção àquele antiquíssimo
berço de uma civilização pré-incaica.
Há muitas ruínas pré-incaicas nas
proximidades de Lima. A mais notável é Pachacamac, distante três horas da
capital pela Rodovia Panamericana e eu fiquei absolutamente pasmo com tal
estrada. Com três faixas de trânsito de cada lado, muito reta e o asfalto como
um veludo, senti inveja no bom sentido. Acho que passará muito e muito tempo
até que tenhamos alguma rodovia como essa no Brasil. Estamos atrasados no
Paraná, onde existem só três estradas asfaltadas e praticamente tudo em faixa
única: de Curitiba a Paranaguá, de Curitiba a Foz do Iguaçu e de Curitiba a
Maringá e Londrina, essas duas últimas passando por Ponta Grossa.
Chegamos à entrada
do Parque Nacional. Embora no meio do deserto, a entrada é toda gramada, de um
verde maravilhoso e raro nessa região do mundo. Logo encontrei uns lhamas
soltos por ali, muito mansos. Cheguei perto deles, toquei-os, mesmo sabendo do
risco de ser cuspido na cara. Isso mesmo: quando os lhamas antipatizam com
algum humano, simplesmente cospem-lhe na cara, e dizem que esse cuspe é muito
fétido. Felizmente saí ileso e as fotos ficarão lindas.
Situada em pleno deserto, Pachacamac foi
há 4 mil anos “o lugar de residência do Deus Criador”. Recentemente descoberta
para o mundo, está sendo escavada aos poucos. Andei pelo deserto completamente
só, encontrando casas e templos no caminho, entre eles o das Mamacunas. Muito
ao longe, ergue-se a Grande Pirâmide de Pachacamac, que é a maior de todas nas
Américas e diz-se que foi construída com milhões de tijolos ‘cozidos ao sol’,
num período certamente anterior ao da ‘cortina de fumaça’. É considerado o
local mais sagrado de toda a faixa litorânea. Seu nome tem sido traduzido como ‘Guia
do mundo’ (Pacha = terra, mundo; Camac = senhor, guia).
Então fui entrando na área
arqueológica. Cheguei a avançar mais ou menos um quilômetro por aquelas ruas
poeirentas sem encontrar nem uma única pessoa. Isso provoca estranhas sensações
e receios naquela região tão isolada e remota. Não há medo de assalto, mas uma
espécie de temor tribal, um temor transcendental, algo que parece estar no
código genético de nós, humanos, e que é a sensação da estranheza pelo mais
absoluto isolamento. É o estranhamento de se ver distante de tudo e de todos, à
mercê do desconhecido, andando entre restos de construções de eras muito
remotas, feitas de adobe. Todo o horizonte é numa só cor: o marrom meio
acinzentado do deserto. Rumando bem mais ao sul, beirando o mar, está o deserto
mais seco do planeta, o Atacama, entre o Peru e o Chile.
Entretanto, na época em que as tribos
costeiras apenas floresciam, Pachacamac já se cobria de tal fama, que nem os
incas, quando conquistaram o litoral, se atreveram a modificá-la. E assim intocada,
Pachacamac foi absorvida pelo altar dos deuses incaicos.
As construções em Pachacamac são
feitas com adobe, como já disse pouco acima. Com barro. Não há pedras, nem
tijolos... há apenas areia compactada em blocos, e assim chegaram a erguer, ali
em Pachacamac, a maior pirâmide das Américas. Bastaria uma tempestade para
derreter aquelas paredes milenares, transformando-as em barro sem forma. Mas...
ali a chuva é um fenômeno praticamente desconhecido, e por isso o adobe pode
manter sua forma através dos séculos.
Logo à entrada da área arqueológica
está a Casa de las Mamacunas. A placa diz tudo, que aqui traduzo para
facilitar: ‘Dentro da casa havia mulheres maiores de idade. Eram chamadas de
Mamacunas que quer dizer Mulher que tem o cuidado de fazer o ofício de mãe.
Porque umas tinham a profissão de abadessas, outras de mestras de noviças para
ensinar-lhes assim o culto divino, como os trabalhos de mãos que faziam para
seu exercício: fiação, tecelagem e costura’.
Devo salientar que durante as horas
que passei andando em Pachacamac, um casal de ingleses foi a única vez que vi
pessoas naquele lugar fascinante. Todo o restante do percurso, fi-lo solitário.
Subi as intermináveis escadarias da
Grande Pirâmide, por entre muros em estado de desmoronamento que há séculos
abrigaram sacerdotes. Ao chegar ao alto da construção, tive uma surpresa: ao
lado oeste, bem próximo à base da pirâmide, estava o Oceano Pacífico!
O Oceano Pacífico... seu nome só me ocorreu na escola, de maneira imprecisa, como um título para distinguir um dos cinco oceanos. E somente após saber da existência de Balboa, pude entendê-lo em sua exata importância. E o grande oceano surgiu para mim com o infinito mistério das suas águas que envolvem milhares de ilhas e alcançam os exóticos países asiáticos. Foi com indisfarçável emoção que vi suas águas pela primeira vez. Desci da pirâmide, corri à praia e tomei posse daquele mar imenso.
LIMA, LA MAGNÍFICA
No dia seguinte,
continuei explorando Lima. Uma das paixões dos peruanos é a tourada. Há duas
“plazas de toros” em Lima, onde nas temporadas o povo assiste à dita “arte” de
El Cordobés. Comenta-se que os peruanos, em questão de touradas, são mais
exigentes do que os próprios espanhóis. [Em 1967 eu tinha curiosidade por
touradas. Mas, desde então, em 55 anos caminhamos muito em direção aos direitos
dos animais. Hoje, em 2022, sou diametralmente contrário às touradas, que
considero uma violência brutal].
Magnífico é o Museu de Arqueologia e Antropologia,
contendo vestígios das culturas tiahuanacota, nazca, tolteca, chavín e outras.
Há cabeças encolhidas por jivaros e crânios trepanados por incas.
O GENOVÊS
Em minha última noite no Peru, buscava o que de
interessante a capital pudesse oferecer. Fazia frio, embora já estivéssemos no
início da primavera, e as mulheres passavam envoltas em pesados casacos de
peles. Súbito, no burburinho das ruas intensamente iluminadas a gás néon, nova
e agradável surpresa: deparei com meu amigo Enrico Rafaelle Longo. Se eu
tivesse encontrado um amigo de infância, não teria ficado mais satisfeito.
Deu-me notícias de Melinda Mills e de seus parentes, com quem chegara de Cuzco
naquela tarde e ficaram hospedados no mesmo hotel. Mas não voltei a vê-los,
pois na manhã seguinte eu partiria de Lima.
E assim tive a prova definitiva de o mundo é, incontestavelmente,
muito pequeno”.
ANTES DE
EMBARCAR, UM PESAMENTO EM MINHA SAUDOSA PRIMA YEDA
[Eu sentia-me animadíssimo porque naquele 1967,
pela primeira vez na vida eu iria viajar num avião a “jato puro”. Não tive como
não me lembrar de minha saudosa prima Yeda Souto Rhormens pelo seguinte motivo:
não me recordo com exatidão quando um avião comercial a jato, o poderoso Boeing
707, pousou pela primeira vez no Brasil, mas creio que foi por volta de 1960.
Yeda, que residia em Campinas, começou a trabalhar na Varig comandando os
embarques de passageiros internacionais. Eu e minha irmã Ivone estávamos
passando as férias em Campinas, e Yeda convidou-nos a conhecer o famoso avião
por dentro. Fomos com ela a Viracopos, e quando o avião aterrissou e os
passageiros desembarcaram, subiu a equipe de limpeza. Quando esta desceu, o
avião ficou pronto para que os passageiros embarcassem com destino a Nova York.
Neste ínterim, eu e Ivone subimos ao avião, conduzidos por um funcionário da
Varig designado por nossa prima. Fiquei impressionado com a beleza e leveza das
poltronas, que eram estofadas com tecidos em suaves tons pastéis. Sentei-me
numa das poltronas, e percebi que o assento era de espuma de borracha, muito
confortável. Quando descemos, cruzamos com os passageiros que levados pela
Yeda, estavam indo para o embarque, e nunca me esqueci de uma jovem senhora
japonesa integrante daquele grupo, que viajava usando traje típico do seu país,
o quimono até aos pés, e com aquele tipo de peruca preta das gueixas, maquiagem
pálida e com tamancos brancos “de dedo”, tal como víamos nos filmes de
Hollywood.
Duas fotos para homenagear a memória de
minha saudosa e linda prima Yeda Souto Rhormens, que tão gentilmente
possibilitou-nos uma visita a um Boeing 707 da Varig lá pelo ano de 1960, que
estava em trânsito por Viracopos, parece-me que proveniente de Buenos Aires com
destino a Nova York.
Eu e Ivone ficamos então sonhando em viajar algum
dia num avião bonito como aquele. E nos sentimos gratos a nossa prima, e maravilhados
com a performance dela, que era uma belíssima loura de olhos azuis, parecida
com Martha Rocha, que sem dúvida deveria impressionar os passageiros
internacionais.
E agora retornemos ao aeroporto de Lima no ano de 1967].
NOSTALGIA
“Havia o roteiro a ser cumprido: na
manhã cinzenta, embarquei no aeroporto internacional de Lima, com destino a
Santiago do Chile, pela rota do Pacífico, a bordo de um poderoso e colorido
DC-8 da Braniff. Seriam quase 5 horas de vôo sobre o Oceano Pacífico. Em
poucos segundos, o grande jato rompeu a “cortina de fumaça”. Logo depois, ao
observar a costa do Peru, senti nostalgia, embora tivesse à minha frente,
ainda, muitos mundos a descobrir.
O Continente foi-se distanciando até
que nada mais restou, senão o azul intenso do mar, fundindo-se na mesma
tonalidade com o do céu, num horizonte apenas suposto. O panorama tornou-se
todo azul, e abstrato em sua ausência de perspectivas.
O suave zumbido das turbinas e a
agradável música de bordo eram um convite ao sono. Voar em avião a jato era muito,
muito mais tranquilo do que nos aviões a hélices. Até parecia estarmos
estacionados no solo. Cansado, adormeci. Sentia sobre meus ombros o peso de 10
mil anos de civilização”.
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