HISTÓRIAS
DO CEMITÉRIO DO CATUMBI
PARTE
6 (de 13)
Francisco Souto Neto
A obra biográfica Visconde de Souto: Ascensão e “Quebra no Rio
de Janeiro Imperial”, escrita em coautoria por mim e minha prima Lúcia
Helena Souto Martini, conta com um APÊNDICE em sua parte final, da página 457 à
510, subintitulado O Cemitério do Catumbi,
no qual faço o relato do que foi a minha luta desde o ano de 1969 – há quase
meio século – pela preservação do setor
histórico da referida necrópole do Rio de Janeiro, onde estão sepultados os
mais importantes vultos históricos do Brasil Imperial.
O Apêndice conta com 13 capítulos. Este
é o 6º capítulo do Apêndice.
APÊNDICE
O CEMITÉRIO DO
CATUMBI:
DEPOIMENTO DE
FRANCISCO SOUTO NETO
6
MAIO DE 1985 – O
CONSTRANGIMENTO COM DAVID CARNEIRO
Em sua coluna da Gazeta do Povo, Alcy Ramalho Filho opina sobre o meu artigo de Souto Neto.
O jornalista curitibano Alcy Ramalho
Filho, que também estampou em sua coluna do dia 6 de maio longa opinião a
respeito do Cemitério do Catumbi, intitulada “Insulto à Memória”, sugeriu-me
publicar um texto sobre o assunto na Gazeta do Povo, o jornal para o qual ele
escrevia e tinha a maior tiragem do Paraná. O diretor do diário, Francisco
Cunha Pereira Filho, gostou da idéia e no dia 7 de maio de 1985, sob o título
“Memória imemorial”, publicou na página dos editoriais a minha extensa crônica,
da qual transcreverei apenas alguns trechos:
Memória imemorial / [...] Em janeiro
último, ao tentar visitar os túmulos dos meus trisavós, os viscondes de Souto,
sepultados no século XIX no Cemitério do Catumbi, fui obrigado a derrubar mato
cerrado, vendo, pelo caminho, as sepulturas de senadores do Império, marqueses,
viscondes, barões, deputados, com as lápides quebradas, os mármores
fragmentados, as campas rompidas [...]. / A Venerável Ordem teve leiloada parte
do seu rico acervo de arte, dentre os quais imensos quadros de Victor
Meirelles, vasos de porcelana chinesa de antigas dinastias e móveis dos séculos
XVIII e XIX. Está claro que referida Ordem não disporá de recursos para a
manutenção desse precioso fragmento da nossa História. [...] No caso, urge que
o IPHAN não adie mais os seus estudos, apressando-se a tombar logo o Cemitério
do Catumbi – antes que ele desapareça, irreversivelmente. [...] (SOUTO NETO,
Francisco. Memória Imemorial. Gazeta do
Povo. Curitiba, 7 maio 1985. p. 2).
Francisco Souto Neto escreve na página dos editoriais da Gazeta do Povo de 7 de maio de 1985, o texto Memória Imemorial.
A Gazeta do Povo tinha naquele tempo como colaborador o historiador
David Carneiro, um intelectual que possuía um dos mais importantes museus da
capital paranaense, o Museu David Carneiro, e que publicava coluna diária
denominada “Veterana Verba”, com crônicas sobre assuntos diversos.
O professor David, como eu o tratava,
era meu conhecido há muitos anos. Ele fora, no ano de 1930, o segundo
presidente do banco para o qual, naquele 1985, eu trabalhava como funcionário
de carreira – Banco do Estado do Paraná S. A., o Banestado – e o entrevistara
há bem pouco tempo para uma matéria sobre a memória daquele que era o banco
oficial do Estado. O historiador, muito lúcido e ágil, ultrapassara os 80 anos.
“Eu sou muito velho”, costumava repetir.
Na manhã de 21 de maio recebi um
telefonema de minha amiga Marléne Sant’Anna, recomendando-me a leitura de
Veterana Verba da edição daquele dia. Comprei o jornal. O título da extensa
crônica com 93 linhas era “Insulto à memória de grandes figuras”. O autor,
usando de ironia, afirmava que lera as referidas publicações naquele mesmo
jornal há poucos dias, para em seguida escrever que o título visconde de Souto
não existia no Brasil. E que em Portugal houve nobres Souto, mas, em outras
palavras, desconhecia algum visconde de Souto, insinuando que esse título
nobiliárquico poderia ser uma farsa:
Insulto à memória de grandes figuras. No jornal do dia 6
de maio, nos comentários de Alcy Ramalho Filho, pude verificar que o protesto
veemente do Dr. Francisco Souto Neto é não apenas válido e do maior interesse
para a preservação concreta da memória nacional, como sobretudo é uma espécie
de exemplo que deve ser tomado para a imitação conservadora, posta no melhor
sentido... / Claro que o que ele chamou com razão “insulto à memória” das
grandes figuras (das quais a história política do nosso país está cheia) deve
receber uma reação construtiva e eficiente. E essa não pode deixar de ser a
atenção (tão frequentemente prestada ao futebol e ao carnaval) que daqui por
diante se preste às pessoas ilustres como foi dito em termos não específicos
“senadores do império, marqueses, viscondes, barões”, estando especialmente
citados Theófilo Otoni e Duque de Caixas, de quem o Dr. Souto se declara
sobrinho-trineto. / Claro que a indignação é válida e a observação triste ao se
“constatar o quanto é efêmera a memória brasileira”, em consequência do que, o
Cemitério do Catumbi no Rio de Janeiro, encontra-se em terrível e doloroso
estado de abandono, dentro de um “denso matagal e servindo de depósito de
lixo”. / O primeiro cuidado deveria ser das respectivas famílias, e o Dr.
Francisco Souto Neto não poderia ignorar que o Duque de Caixas esteve no
Cemitério do Catumbi desde 7 de maio de 1880, até serem seus restos, e da Srª
Duquesa, trasladados em 23 de agosto de 1949 para o Panteon do grande soldado
(e de sua esposa) existente sob a sua estátua na Praça da República, em frente
ao Palácio da Guerra. / Não estando mais lá o Duque de Caxias, o seu
sobrinho-trineto talvez procurasse na mesma tumba de família a outros parentes
não historicamente valiosos; mas nesse caso à família caberia o cuidado, e não
ao poder público ou a instituições de responsabilidade nacional, como foi o
caso do Duque de Caxias. / Por outro lado os cemitérios têm administração
municipal e a essa cabe (se não um perfeito cuidado) ao menos limpeza e estorvo
às depredações e à mácula do lixo que o Dr. Francisco Souto Neto viu jogado no
interior da necrópole. / Também o Dr. Souto Neto teria procurado (segundo Alcy
Ramalho Filho) o visconde de Souto de quem seria herdeiro direto. / Quero crer
que o título de visconde de Souto não exista na nobiliarquia brasileira, embora
pudesse existir em Portugal, onde os Souto, os Souto de Leão e os Souto Maior
são de antiquíssima nobreza, aparentados com os Saavedra e usando mesmo as
armas destes. / Todavia, com o nome de Souto Maior existe aqui o visconde de
Itanhaen, Manoel Inácio Andrade de Souto Maior, mais tarde elevado a marquês,
tendo sido tutor de d. Pedro II. Claro que em Portugal houve duques de Souto
Maior, e aqui, sem o título nobiliárquico específico, houve o visconde, depois
marquês de Itanhaen. / Como isso porém não seja o que nos pode interessar,
volto ao abandono em que se encontra o Cemitério do Catumbi [...]. (CARNEIRO, David. Gazeta do Povo. Curitiba, 21 maio 1985. Veterana Verba, p. 5).
David
Carneiro em sua coluna Veterana Verba da Gazeta do Povo, escreve Insulto à memória de grandes figuras,
que publica na edição de 21 de maio de 1985 da Gazeta do Povo.
Pelo menos num ponto
o professor David Carneiro estava certo: jamais existiu e jamais existirá um visconde de Souto na genealogia brasileira, porque meu trisavô era
visconde por Portugal. Telefonei ao
professor pedindo-lhe que me recebesse ainda naquela manhã, porque eu desejava
provar-lhe a existência do visconde de Souto no Rio de Janeiro imperial.
Muni-me da documentação necessária e juntei também minha certidão de
nascimento, onde consta que sou filho de Arary Souto e neto de Francisco Souto
Júnior, e o registro de batismo do meu avô, onde se lê que Francisco Souto
Júnior era filho de Francisco José Alves Souto e neto de António José Alves
Souto, o visconde de Souto. Dirigi-me, ansioso e irritado, à mansão do
professor. Fui recebido desafiadoramente pelo velho mestre. Ele esperava por
mim na soleira da porta e olhava-me do alto dos degraus da pequena escada de
acesso à casa, com o nariz elevado e os pômulos
avermelhados. Entramos e apresentei-lhe as documentações. À medida em que o
professor manuseava os papeis, vi-o aos poucos esmaecer. A sua expressão, até
há alguns minutos pétrea e colorida, empalideceu e como que desmoronou. Ele se
apercebeu de que, por seu ato intempestivo e sem
fundamento, nos colocara, a ambos, em situação pública muito desagradável. Vale
acrescentar que naquele contato nem me referi à minha ascendência dos Lima e
Silva pelo lado da minha avó paterna – assunto por ele tratado com desdém – já
que a questão central era comprovar ao historiador a existência do visconde de
Souto.
Quem leu sua importante coluna naquele
dia, que me causara grande embaraço, poderia não lê-la no dia da retratação, e
fi-lo saber da gravidade do seu erro. Agora, passados tantos anos, o que
realmente vale lembrar é que a partir daquele momento, arrependido pelo
constrangimento causado, o velho historiador tornou-se meu grande aliado. Sua
coluna, dizia-se, alcançava o mundo cultural carioca. E algumas vezes nos meses
seguintes, ele nela se referiria ao visconde de Souto e ao abandono do
Cemitério do Catumbi, pedindo providências às autoridades do Rio de Janeiro.
Quatro dias depois, na edição de
sábado, 25 de maio de 1985,
a seção Veterana Verba da Gazeta do Povo continha este
título: “Travamos conhecimento com o visconde de Souto”. No primeiro parágrafo,
escreveu David Carneiro:
Travamos conhecimento com o visconde de
Souto: / Como saísse em 21 de maio a minha crônica a propósito do “insulto à
memória de grandes figuras brasileiras”, tive o gosto de receber telefonema do
Sr. Francisco Souto Neto que logo chegou à minha casa para realmente confirmar
o que eu supunha acontecesse” [sic]. “O visconde de Souto, falecido no Rio de
Janeiro em 14 de fevereiro de 1880, tinha o seu título desde o tempo de D. Luís
I, mas foi importantíssimo como banqueiro que se fez por inclinação espontânea,
aqui no Brasil, iniciando-se como empregado da firma Ferreira & Cohn, na
qual ascendeu pela flagrante simpatia [...].(CARNEIRO, David. Gazeta do Povo. Curitiba, 25 maio 1985.
Veterana Verba. p. 5).
David
Carneiro em sua coluna Veterana Verba da Gazeta do Povo, escreve Travamos conhecimento com o Visconde de
Souto, que publica na edição de 25 de maio de 1985 da Gazeta do Povo.
E assim prosseguiu David Carneiro até ao pé da página, comentando os
grandes serviços prestados pelo visconde ao Brasil imperial. Sim, agora o
visconde de Souto existia para o ilustre professor. Entretanto, escrever
“realmente confirmar o que eu supunha acontecesse”, em vez de “realmente
confirmar o meu equívoco”, foi, ao que parece, o modo que naquele momento ele
encontrou para “se desculpar” sem efetivamente fazê-lo, no que foi impedido,
quiçá, pela altivez que lhe era peculiar.
Outros jornais de Curitiba
multiplicaram as notícias, como o Correio de Notícias.
Até o Todos Nós, o jornal oficial do Banco do Estado do Paraná, que era
dirigido por Tadeu Petrin, divulgou a notícia.
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CONTINUA NA PARTE 7
CONTINUA NA PARTE 7
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