quarta-feira, 23 de março de 2022

VIAGEM PELA AMÉRICA DO SUL EM 1967 - 13ª PARTE - PACHACAMAC E VOO DE LIMA A SANTIAGO DO CHILE, por Francisco Souto Neto.

 

Francisco Souto Neto em Pachacamac, na Casa das Mamacunas.

  

Comendador Francisco Souto Neto

 

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VIAGEM PELA AMÉRICA DO SUL EM 1967

 

13ª PARTE


PARQUE NACIONAL DE PACHACAMAC

E O VOO DE LIMA A SANTIAGO

SOBRE O OCEANO PACÍFICO

por  Francisco Souto Neto

 

Esta é uma transcrição do meu diário da viagem que fiz a vários países da América do Sul em 1967, iniciada na semana em que completei 24 anos de idade. Passados 55 anos, é interessante observar os detalhes de como eram feitas as viagens naquele tempo e as impressões que os lugares causaram a este então jovem viajante. A transcrição do meu diário de viagem vai entre aspas, e quando eu achar necessário intervir no texto, farei isto entre colchetes.

 

PARQUE NACIONAL DE PACHACAMAC

 

“O meu maior interesse arqueológico nas imediações de Lima era o Parque Nacional de Pachacamac. Acordei-me muito cedo e tomei um táxi (um maravilhoso Impala 1967) em direção àquele antiquíssimo berço de uma civilização pré-incaica.

Há muitas ruínas pré-incaicas nas proximidades de Lima. A mais notável é Pachacamac, distante três horas da capital pela Rodovia Panamericana e eu fiquei absolutamente pasmo com tal estrada. Com três faixas de trânsito de cada lado, muito reta e o asfalto como um veludo, senti inveja no bom sentido. Acho que passará muito e muito tempo até que tenhamos alguma rodovia como essa no Brasil. Estamos atrasados no Paraná, onde existem só três estradas asfaltadas e praticamente tudo em faixa única: de Curitiba a Paranaguá, de Curitiba a Foz do Iguaçu e de Curitiba a Maringá e Londrina, essas duas últimas passando por Ponta Grossa.

Chegamos à entrada do Parque Nacional. Embora no meio do deserto, a entrada é toda gramada, de um verde maravilhoso e raro nessa região do mundo. Logo encontrei uns lhamas soltos por ali, muito mansos. Cheguei perto deles, toquei-os, mesmo sabendo do risco de ser cuspido na cara. Isso mesmo: quando os lhamas antipatizam com algum humano, simplesmente cospem-lhe na cara, e dizem que esse cuspe é muito fétido. Felizmente saí ileso e as fotos ficarão lindas.

Situada em pleno deserto, Pachacamac foi há 4 mil anos “o lugar de residência do Deus Criador”. Recentemente descoberta para o mundo, está sendo escavada aos poucos. Andei pelo deserto completamente só, encontrando casas e templos no caminho, entre eles o das Mamacunas. Muito ao longe, ergue-se a Grande Pirâmide de Pachacamac, que é a maior de todas nas Américas e diz-se que foi construída com milhões de tijolos ‘cozidos ao sol’, num período certamente anterior ao da ‘cortina de fumaça’. É considerado o local mais sagrado de toda a faixa litorânea. Seu nome tem sido traduzido como ‘Guia do mundo’ (Pacha = terra, mundo; Camac = senhor, guia).



O belo Parque Nacional de Pachacamac, um oásis verde no meio do deserto.


Lhamas mansos pastando no parque. As urnas que aparecem nas fotos foram encontradas nas ruínas de Pachacamac.


A mamãe lhama tem a minha altura. Olha-me suave e amistosamente. Seus olhos são expressivos e ela parece usar longos cílios postiços. É um animal elegante.


O bebê lhama parece um cordeiro. Lança-me um olhar desconfiado.

Então fui entrando na área arqueológica. Cheguei a avançar mais ou menos um quilômetro por aquelas ruas poeirentas sem encontrar nem uma única pessoa. Isso provoca estranhas sensações e receios naquela região tão isolada e remota. Não há medo de assalto, mas uma espécie de temor tribal, um temor transcendental, algo que parece estar no código genético de nós, humanos, e que é a sensação da estranheza pelo mais absoluto isolamento. É o estranhamento de se ver distante de tudo e de todos, à mercê do desconhecido, andando entre restos de construções de eras muito remotas, feitas de adobe. Todo o horizonte é numa só cor: o marrom meio acinzentado do deserto. Rumando bem mais ao sul, beirando o mar, está o deserto mais seco do planeta, o Atacama, entre o Peru e o Chile.

Entretanto, na época em que as tribos costeiras apenas floresciam, Pachacamac já se cobria de tal fama, que nem os incas, quando conquistaram o litoral, se atreveram a modificá-la. E assim intocada, Pachacamac foi absorvida pelo altar dos deuses incaicos.

As construções em Pachacamac são feitas com adobe, como já disse pouco acima. Com barro. Não há pedras, nem tijolos... há apenas areia compactada em blocos, e assim chegaram a erguer, ali em Pachacamac, a maior pirâmide das Américas. Bastaria uma tempestade para derreter aquelas paredes milenares, transformando-as em barro sem forma. Mas... ali a chuva é um fenômeno praticamente desconhecido, e por isso o adobe pode manter sua forma através dos séculos.

Logo à entrada da área arqueológica está a Casa de las Mamacunas. A placa diz tudo, que aqui traduzo para facilitar: ‘Dentro da casa havia mulheres maiores de idade. Eram chamadas de Mamacunas que quer dizer Mulher que tem o cuidado de fazer o ofício de mãe. Porque umas tinham a profissão de abadessas, outras de mestras de noviças para ensinar-lhes assim o culto divino, como os trabalhos de mãos que faziam para seu exercício: fiação, tecelagem e costura’.

Deixando o parque dos lhamas, ingresso completamente só no deserto até chegar a estas ruínas.


Entro na Casa das Mamacunas.


Na Casa das Mamacunas encontro um casal de ingleses. A meu pedido, a lady me fotografa no nicho de um deus e desaparece com o marido como fantasmas. Prossigo sozinho a explorar Pachacamac.


Aqui as construções estão em estado de deterioração. Sigo pela rua acompanhando os sinais dos pneus dum automóvel.


É desagradável encontrar ossadas (humanas?) no deserto.


É desagradável encontrar ossadas (humanas?) no deserto.


Esta é a região mais seca do mundo. Para demonstrar que interessante é a adaptação (simbiose) das plantas que aqui crescem: elas não aprofundam as raízes, que permanecem acima da areia para captar um pouco da umidade que vem do mar. Aqui, peguei uma planta e a coloquei sobre a minha bolsa de viagem para mostrar que ela tem as raízes soltas. A bolsa, ganhei no escritório da Braniff em Lima, quando fui confirmar meu voo para Santiago do Chile.


A entrada para o Templo do Sol, que fica na maior pirâmide construída de todas as Américas.

Devo salientar que durante as horas que passei andando em Pachacamac, um casal de ingleses foi a única vez que vi pessoas naquele lugar fascinante. Todo o restante do percurso, fi-lo solitário.

Subi as intermináveis escadarias da Grande Pirâmide, por entre muros em estado de desmoronamento que há séculos abrigaram sacerdotes. Ao chegar ao alto da construção, tive uma surpresa: ao lado oeste, bem próximo à base da pirâmide, estava o Oceano Pacífico!

O Oceano Pacífico... seu nome só me ocorreu na escola, de maneira imprecisa, como um título para distinguir um dos cinco oceanos. E somente após saber da existência de Balboa, pude entendê-lo em sua exata importância. E o grande oceano surgiu para mim com o infinito mistério das suas águas que envolvem milhares de ilhas e alcançam os exóticos países asiáticos. Foi com indisfarçável emoção que vi suas águas pela primeira vez. Desci da pirâmide, corri à praia e tomei posse daquele mar imenso.


Subo as muitas escadas do Templo do Sol, que é parte da pirâmide.


Chegando ao ponto mais alto da pirâmide, olho para o lado oeste e observo, com surpresa, que a sua base se assenta numa praia do Oceano Pacífico!


Vista de frente, eis a fachada do Templo do Sol, no topo da pirâmide! Há 6.000 anos, muito antes da chegada dos Incas, essas paredes abrigaram sacerdotes. Isto é a extraordinária Pachacamac.


Retorno ao Parque Nacional, aprecio o oásis verde e tomo um táxi de volta a Lima.


Voltando a Lima, fotografo um pedaço da bela Rodovia Panamericana.

 

LIMA, LA MAGNÍFICA

 

No dia seguinte, continuei explorando Lima. Uma das paixões dos peruanos é a tourada. Há duas “plazas de toros” em Lima, onde nas temporadas o povo assiste à dita “arte” de El Cordobés. Comenta-se que os peruanos, em questão de touradas, são mais exigentes do que os próprios espanhóis. [Em 1967 eu tinha curiosidade por touradas. Mas, desde então, em 55 anos caminhamos muito em direção aos direitos dos animais. Hoje, em 2022, sou diametralmente contrário às touradas, que considero uma violência brutal].

Estou entrando na Plaza de Toros.


Não era dia de tourada, mas entrei para ver como era a arena.


A arena de touros. Pode ser incrível, mas... eu apareço nesta foto.

Magnífico é o Museu de Arqueologia e Antropologia, contendo vestígios das culturas tiahuanacota, nazca, tolteca, chavín e outras. Há cabeças encolhidas por jivaros e crânios trepanados por incas.

Eis-me agora visitando o fabuloso Museu Arqueológico e Antropológico de Lima, onde há vestígios das culturas tiahuanacota, chavín, incaica, tolteca, astecas e outras.


Aí eu vi cabeças de índios encolhidas pelos jivaros e crâneos trepanados por incas. É um museu de suma importância para os interessados em antigas civilizações sul-americanas.

 

O GENOVÊS

 

Em minha última noite no Peru, buscava o que de interessante a capital pudesse oferecer. Fazia frio, embora já estivéssemos no início da primavera, e as mulheres passavam envoltas em pesados casacos de peles. Súbito, no burburinho das ruas intensamente iluminadas a gás néon, nova e agradável surpresa: deparei com meu amigo Enrico Rafaelle Longo. Se eu tivesse encontrado um amigo de infância, não teria ficado mais satisfeito. Deu-me notícias de Melinda Mills e de seus parentes, com quem chegara de Cuzco naquela tarde e ficaram hospedados no mesmo hotel. Mas não voltei a vê-los, pois na manhã seguinte eu partiria de Lima.

E assim tive a prova definitiva de o mundo é, incontestavelmente, muito pequeno”.

 

ANTES DE EMBARCAR, UM PESAMENTO EM MINHA SAUDOSA PRIMA YEDA

 

[Eu sentia-me animadíssimo porque naquele 1967, pela primeira vez na vida eu iria viajar num avião a “jato puro”. Não tive como não me lembrar de minha saudosa prima Yeda Souto Rhormens pelo seguinte motivo: não me recordo com exatidão quando um avião comercial a jato, o poderoso Boeing 707, pousou pela primeira vez no Brasil, mas creio que foi por volta de 1960. Yeda, que residia em Campinas, começou a trabalhar na Varig comandando os embarques de passageiros internacionais. Eu e minha irmã Ivone estávamos passando as férias em Campinas, e Yeda convidou-nos a conhecer o famoso avião por dentro. Fomos com ela a Viracopos, e quando o avião aterrissou e os passageiros desembarcaram, subiu a equipe de limpeza. Quando esta desceu, o avião ficou pronto para que os passageiros embarcassem com destino a Nova York. Neste ínterim, eu e Ivone subimos ao avião, conduzidos por um funcionário da Varig designado por nossa prima. Fiquei impressionado com a beleza e leveza das poltronas, que eram estofadas com tecidos em suaves tons pastéis. Sentei-me numa das poltronas, e percebi que o assento era de espuma de borracha, muito confortável. Quando descemos, cruzamos com os passageiros que levados pela Yeda, estavam indo para o embarque, e nunca me esqueci de uma jovem senhora japonesa integrante daquele grupo, que viajava usando traje típico do seu país, o quimono até aos pés, e com aquele tipo de peruca preta das gueixas, maquiagem pálida e com tamancos brancos “de dedo”, tal como víamos nos filmes de Hollywood.


Duas fotos para homenagear a memória de minha saudosa e linda prima Yeda Souto Rhormens, que tão gentilmente possibilitou-nos uma visita a um Boeing 707 da Varig lá pelo ano de 1960, que estava em trânsito por Viracopos, parece-me que proveniente de Buenos Aires com destino a Nova York.

Eu e Ivone ficamos então sonhando em viajar algum dia num avião bonito como aquele. E nos sentimos gratos a nossa prima, e maravilhados com a performance dela, que era uma belíssima loura de olhos azuis, parecida com Martha Rocha, que sem dúvida deveria impressionar os passageiros internacionais.

E agora retornemos ao aeroporto de Lima no ano de 1967]. 

O gigantesco aeroporto internacional de Lima, cujas portas são automáticas e abrem-se eletronicamente (coisa que nunca vi no Brasil). É cheio de lojas finíssimas.


Enquanto vou andando para embarcar, aproveito para ir fotografando.


Chegando à escada para subir ao avião.


No alto da escada, fotografo as duas turbinas do DC-8.


Suavemente o avião sobe e vejo que as terras peruanas vão ficando para trás, enquanto seguimos pela rota do Oceano Pacífico.


O voo sobre o Oceano Pacífico com destino a Santiago do Chile.


NOSTALGIA

 

“Havia o roteiro a ser cumprido: na manhã cinzenta, embarquei no aeroporto internacional de Lima, com destino a Santiago do Chile, pela rota do Pacífico, a bordo de um poderoso e colorido DC-8 da Braniff. Seriam quase 5 horas de vôo sobre o Oceano Pacífico. Em poucos segundos, o grande jato rompeu a “cortina de fumaça”. Logo depois, ao observar a costa do Peru, senti nostalgia, embora tivesse à minha frente, ainda, muitos mundos a descobrir.

O Continente foi-se distanciando até que nada mais restou, senão o azul intenso do mar, fundindo-se na mesma tonalidade com o do céu, num horizonte apenas suposto. O panorama tornou-se todo azul, e abstrato em sua ausência de perspectivas.

O suave zumbido das turbinas e a agradável música de bordo eram um convite ao sono. Voar em avião a jato era muito, muito mais tranquilo do que nos aviões a hélices. Até parecia estarmos estacionados no solo. Cansado, adormeci. Sentia sobre meus ombros o peso de 10 mil anos de civilização”.

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Francisco Souto Neto na atualidade, em tempo de pandemia e recolhimento.


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