segunda-feira, 14 de março de 2022

VIAGEM PELA AMÉRICA DO SUL EM 1967 - 8ª PARTE - EM TREM DE PUNO A CUSCO, por Francisco Souto Neto.

 

"Abra la Raya", "Pase de Raya" ou "Garganta de Raya", é o local com a maior altitude da ferrovia entre Puno e Cusco, 4338 metros, muito superior ao ponto culminante do Brasil. O pico culminante da Cordilheira de Raya é o Chimboya, com 5.489 metros!


 
Comendador Francisco Souto Neto

 

---------o--------

 

VIAGEM PELA AMÉRICA DO SUL EM 1967

8ª PARTE


EM TREM DE PUNO A CUSCO

por  Francisco Souto Neto

 

Esta é uma transcrição do meu diário da viagem que fiz a vários países da América do Sul em 1967, iniciada na semana em que completei 24 anos de idade. Passados 55 anos, é interessante observar os detalhes de como eram feitas as viagens naquele tempo e as impressões que os lugares causaram a este então jovem viajante. A transcrição do meu diário de viagem vai entre aspas, e quando eu achar necessário intervir no texto, farei isto entre colchetes.

 

O EMBARQUE DE TREM EM PUNO

 

“Após a travessia do Lago Titicaca em navegação de 13 horas, o navio atracou na cidade peruana de Puno. Após a aduana, eu e os passageiros do navio tomamos o trem parado ali ao lado, que nos levaria a Cusco.

Movimento da estação ferroviária a céu aberto em Puno.

Era um trem com muitos vagões, bem extenso, e todos os vagões eram divididos ao meio em primeira e segunda classe, separadas por uma porta trancada. Os lugares não eram reservados; sentava-se onde quisesse. Na primeira classe em que embarquei, eu vi apenas um passageiro do navio: o italiano Enrico Rafaelle Longo. Infelizmente Melinda Mills ficou em outro vagão com sua irmã e cunhado, bem como os meus outros amigos da travessia do Titicaca. Em frente a cada duas poltronas havia uma mesa de fórmica, onde eu poderia escrever neste meu caderno de memórias, e também tomar as refeições. As poltronas são confortáveis, mas não reclináveis. A estrada de ferro é de bitola larga.





Acima, fotografias tiradas durante a viagem de Puno a Cusco


Durante as primeiras duas horas a viagem seguiu monótona, naquela sequência que é o deserto do Altiplano. Muitas vezes o trem parou em estações de vilas, quando a primeira classe era invadida por índios e cholas, vendendo os mais variados objetos de artesanato e alimentos, incluindo-se refeições servidas em pratos de papelão, que as pessoas comem sem talheres, com os dedos. Foi o que, da janela do trem, vi ocorrer ali fora. Contei o número de índios que entraram de uma só vez na primeira classe para vender mercadorias: eram 21. É necessário muito cuidado com a bagagem para não ser furtado. O que mais me impressionou nessas paradas, foi ver as cholas exporem ao chão e ao sol, a sua mercadoria, no que se inclui ovelhas esquertejadas – algo muito anti-higiênico.

Melinda desceu para comprar um objeto e viu-me na janela do trem. Acenou alegremente, desapareceu por uns instantes e minutos antes do trem partir, ela surgiu no meu vagão com sua bolsa a tiracolo. Deixou seus familiares cuidando de sua mala e prosseguiu a viagem comigo e Rafaelle.

Somente às 10:30 horas a paisagem começou a se modificar: surgiram os contrafortes da Cordilheira Real com neves eternas. Eu perscrutava o panorama à procura de vulcões que pudessem ser identificados pelo caminho. As aldeias se sucediam, cada vez em altitude maior. Encomendamos almoços ao garçon do trem. O sol era ardente e cortante através da janela. Mas quando passávamos pela sombra das montanhas fazia muito frio. Meus lábios secaram e os de Melinda e Rafaelle estavam partidos. Vimos alguns lhamas e um imenso condor que dava giros pelo éter.

Ao meio-dia o trem continuava subindo. Nas aldeias por onde passamos, a altitude era sempre superior a 4.000 metros. Ficamos todos meio silenciosos, talvez um pouco afetados pelos efeitos da altitude da vez maior.


A CARNE QUASE 'PODRIDA'



Numa das paradas, um índio subiu na primeira classe carregando, ofegante, dois enormes sacos de estopa. Parou quase à minha frente, suado, abaixou-se e gatinhando sob minha mesa, colocou um dos sacos embaixo da poltrona que estava diante de mim (encontrava-se vazia, pois éramos poucos passageiros ocupando a primeira classe), pôs o outro saco abaixo das poltronas umas quatro ou cinco filas à frente... e rumou para a segunda classe pela porta que então estava fechada sem ser à chave. O trem prosseguiu enquanto esperávamos pelo nosso almoço. De repente senti um cheiro muito desagradável de açougue. Não era cheiro de podre (diz-se “podrido” em espanhol), mas de CARNE, como sentimos às vezes em supermercados. E vinha do saco de estopa. Com os pés, tentei empurrá-lo para a frente, em vão. Parecia grudado ao chão. Melinda tentou ajudar-me e, não conseguindo, pediu socorro a Rafaelle, que também sentira o cheiro enjoativo. Melinda levantou-se, Rafaelle sentou-se ao meu lado e então, ‘a quatro pés’, começamos a tentar empurrar o saco de estopa para a frente. Pisar sobre toda aquela carne era como estar pisando uma gigantesca esponja ou em quiabos viscosos. Melinda gargalhava. Desistimos, pois a carne pesava como chumbo. Minha amiga mudou-se dali e foi sentar-se ao lado de Rafaelle. Irritado, fiz uma derradeira tentativa: ‘deitei-me’ sobre o assento, apoiei as mãos sobre o encosto da poltrona e fiz um esforço máximo sobre o saco de estopa... e ele deslizou como quem desliza na neve ou escorrega no sabão! Foi parar sob a terceira fila de assentos após o meu, arrastando seu cheiro quase 'podrido' para outras vítimas.

Chegou o almoço. Recusei a salada porque não gostei do estado das folhas. A sopa também não tinha aspecto convidativo, o cozinheiro que me desculpe. Pelo menos o arroz com batatas e carne estavam saborosos. Gelatina como sobremesa. A altitude era então de 4.300 metros.

Às duas da tarde atingimos a Garganta de Raya (‘Pase de Raya’ ou 'Abra la Raya'). Apesar de ter várias denominações, esse lugar é apenas a divisa entre os 'municípios' de Puno e Cusco. Havia neve em ambos os lados do trem. 


A GARGANTA DE RAYA


A Garganta de Raya (Passe de Raya ou Abra la Raya), está a 4.338 metros de altitude. Mas o pico culminante da Cordilheira de Raya é o Chimboya, com 5.489 metros!   

[A Garganta de Raya é o ápice em altitude na viagem em trem de Puno a Cusco. Pela primeira vez neste relato que já está em seu oitavo capítulo, vou ilustrar, imediatamente abaixo, com fotografias atuais da Garganta de Raya, que acabo de encontrar no Google]








[Em 2022 o trem de Puno a Cusco é o que se vê nas fotos acima. Note-se que na penúltima foto, continuam mantendo uma mesa entre as poltronas, só que o aspecto do vagão é agora de grande beleza e luxo. E a última foto mostra que o último vagão da composição funciona como um bar, com a parte traseira aberta, ao ar livre.]



[Voltemos, abaixo, ao ano de 1967.]

Após a Garganta de Raya o trem começa a descer e corre muito. A paisagem muda completamente, pois agora os vales são muito férteis e a terra é toda aproveitada para plantio, até ao alto dos montes; tem-se a impressão de que os peruanos herdaram a técnica inca de cultivar a terra em degraus.

Dentro do vagão alguns turistas abriram uma garrafa de champagne, comemorando algo. Da janela do trem observei que os lavradores constroem caminhos artificiais de água para irrigar o solo. Vacas, ovelhas e lhamas pastam grama verde-pálida, de rara beleza. Até às 4 horas da tarde, a paisagem causa surpresa a cada dobra do terreno. Pedi um lanche.

O trem parou num lugarejo e surgiu o índio buscando sua carne quase podrida. Não a encontrando, ficou alvoroçado. Após alguns segundos encontrou o saco de estopa e desceu, arcado pelo brutal peso de ambos os sacos, mas todo satisfeito.

Veio o lanche, que era de primeiríssima: torradas sui-gêneris com manteiga, três tipos de geleia e delicioso café com leite. Talvez eu estivesse faminto, por gostar tanto do lanche. No açucareiro não há uma colher ou concha apropriada, como na Bolívia. Agora o trem margeava o Rio Vilcanota, que segue turbilhonante entre rochas. Ele é afluente do Urubamba, que é afluente do Marañon-Solimões-Amazonas.


Agora aproximando-nos de Cusco.

Às 7 da noite avistamos as luzes da Venerável Cidade de Cusco, o umbigo do mundo... a capital do poderoso Império Inca!

Uma fascinante aventura está para começar...”

 

-o-

Nenhum comentário:

Postar um comentário