sexta-feira, 18 de março de 2022

VIAGEM PELA AMÉRICA DO SUL EM 1967 - 10ª PARTE - A CATEDRAL E RUINAS AO REDOR DE CUSCO por Francisco Souto Neto.

 

 

Francisco Souto Neto sentado num banco de uma esquina em Cusco, apreciando a arquitetura.espanhola construída sobre pedras incaicas.

 

 

Comendador Francisco Souto Neto

 

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VIAGEM PELA AMÉRICA DO SUL EM 1967

 

10ª PARTE


A CATEDRAL

E RUÍNAS AO REDOR DE CUSCO

por  Francisco Souto Neto

 

Esta é uma transcrição do meu diário da viagem que fiz a vários países da América do Sul em 1967, iniciada na semana em que completei 24 anos de idade. Passados 55 anos, é interessante observar os detalhes de como eram feitas as viagens naquele tempo e as impressões que os lugares causaram a este então jovem viajante. A transcrição do meu diário de viagem vai entre aspas, e quando eu achar necessário intervir no texto, farei isto entre colchetes.

 

CUSCO

 

“Na Plaza de Armas de Cusco estão La Compañia, mais duas outras igrejas (Sagrada Família e da Vitória), a Universidade e a Catedral. Eu e Rafaelle fomos à Universidade, em cuja fachada em estilo Renascença, há esculturas de duas cabeças de índios com expressões severas. Era dia 22 de outubro de 1967. Dali fomos à Catedral de Cusco.

Francisco Souto Neto fotografa a majestosa Catedral de Cusco.


Francisco Souto Neto posa na entrada na Catedral de Cusco, entre duas índias que estão orando. Uma terceira nativa está entrando, com sua interessante roupa típica.

A construção foi iniciada em 1560 e concluída em 1668. Toda em granito, mescla estilo romano com arte inca primitiva. A fachada é chata e ser ornatos. No centro há motivos barrocos esculpidos, mas a decoração dos portais é característica do estilo da severa Renascença espanhola. Por dentro, a catedral é um grande quadrilátero e contei doze altares laterais, além do altar principal. Quadros da Escola de Cusco ornam os lados baixos. A ornamentação do altar é toda sustentada por prata. Durante um século artistas trabalharam na abóbada. Esse templo foi construído para os índios, isto é, para que eles se impressionassem com o Deus dos cristãos. Num dos altares do lado direito de quem entra está a imagem de um Cristo de cedro enegrecido pelo tempo. É considerado milagroso desde que teria feito parar o terremoto de 1650.

Em meus prospectos consta que na sacristia da catedral há uma tela de Van Dyck. Lá fomos recebidos por um padre muito atencioso, que nos mostrou a tela protegida com barras de ferro, com o motivo de um Cristo agonizante. As paredes da sacristia estão cobertas de pinturas e há móveis barrocos magnificamente trabalhados. Então o padre ensaiou seu melhor sorriso, estufou o peito e apontou a outra parede, dizendo: ‘Este é um Rubens e aquele é um Miguel Ângelo’. Eu e Rafaelle nos entreolhamos surpresos, mas ambos não acreditamos em suas autenticidades.

 

SOBRE O VAN DYCK


[Uma observação que estou acrescentando no dia 19 de março de 2022, 55 anos após minha viagem pela América do Sul: Na década de 60 os filmes usados em máquinas fototográficas não conseguiam resultados em ambientes fechados e sem luz natural. Era preciso usar flash. O flash era um acessório que se acoplava à máquina, tinha que na hora rosquear uma lâmpada especializada, que fazia “plôf” e queimava. Para nova fotografia com flash precisava desrosquear a lâmpada já usada e rosquear outra lâmpada virgem. Eu não tinha esse acessório volumoso, nem queria. Então não dava para fotografar dentro de igrejas, sempre escuras. E por esse motivo não fotografei a pintura de Van Dyck, que ficava atrás de uma grade de ferro para proteção. Busquei então encontrar a pintura na internet e nada achei. Cheguei a consultar o mais completo livro que há sobre as obras de arte da Catedral de Cusco, chamado “Tesoros de la Catedral del Cusco”, e não vi nada sobre o tal Van Dyck. Neste endereço abaixo, o livro pode ser aberto e folheado em suas mais de 300 páginas:

 

https://issuu.com/cooperativabolognesi/docs/cusco

 

Continuei pesquisando e na Wikipédia em inglês consegui a seguinte informação (aqui acionei a tradução automática):

 

Dentro da sacristia, uma grande pintura escura da crucificação é comumente atribuída ao artista holandês Anthony van Dyck . Alguns guias locais dizem que é obra do artista espanhol Alonso Cano, do século XVII. [2]

 

Portanto, aquela tela que eu vi em 1967 seria uma falsa atribuição a Van Dyck e qualquer referência ao mesmo foi abolida das informações sobre o acervo de arte da igreja. Sobre os quadros de Rubens e o Michelângelo, então, nem se fala. Mas essas falsidades são habituais até mesmo nas melhores igrejas italianas. A quantidade de pedaços de madeira que eles exibem como “pedaços da cruz de Jesus Cristo” em altares especiais e considerados “milagrosos”, nem dá para comentar...

E voltemos ao ano de 1967, no momento em que saímos da catedral de Cusco...]

O padre pediu-nos esmolas para a Catedral e cada um de nós ofereceu-lhe um sol (a unidade monetária do Peru). Olhamos aos nossos relógios e vimos que faltavam apenas 15 minutos para nos encontrarmos com nossos amigos norte-americanos; é que havíamos combinado no dia anterior com o motorista de táxi que já era nosso conhecido, para levar-nos a um passeio às ruínas incas nos arredores de Cusco. Sem tempo para o almoço, entramos num restaurante e saímos comendo sanduíches rumo ao local do encontro, onde Melinda, a irmã e o cunhado já estavam à nossa espera. Na hora combinada, surgiu o magnífico Impalla branco que nos levaria à excursão que duraria 5 horas. E foi com o maior conforto, pois nesses carrões modernos vão duas pessoas na frente com o motorista e três atrás com espaço de sobra porque ali poderiam ir até quatro pessoas. O preço que me coube pagar foi de... apenas NCr$5,00!

 

RUÍNAS AO REDOR DE CUSCO

 

Em primeiro lugar visitamos o palácio de Manco Capac, que agora pertence a um milionário excêntrico. Da estrada avistamos bem ao longe a formidável Fortaleza de Sacsayhuamán, que visitaríamos mais tarde. De repente, passamos por um caminho inca!

Esses caminhos foram assombrosamente bem feitos na longa história dos incas: do centro da atual Plaza de Armas partiam quatro estradas que iam aos quatro cantos do império. A maior delas ia até Valparaíso no Chile, com extensão de 2.000 quilômetros. Eram superiores às estradas romanas e, pelo estilo grandioso, muitos estudiosos as comparam à obra da colossal Muralha da China. A mais extraordinária dessas estradas partia de Cusco em direção a Quito e era a mais real e a mais larga: atravessa vales fundos, montes nevados, pantanais, rios caudalosos e grandes penhascos, abre caminho entre rochedos, tem parapeitos à margem dos rios e apresenta degraus e plataformas. Os incas não conheciam nem a roda, nem cavalos, de modo que nas estradas a circulação era de pessoas à pé. Por essas estradas existia um sistema de correios muito eficiente e as comunicações de Valparaíso a Quito poderiam demorar apenas seis dias. Acho que nem o correio brasileiro atual seria tão eficiente quando o dos incas. Basta lembrar que minha carta registrada aérea para enviei de Ponta Grossa para o hotel de La Paz pedindo uma reserva, demorou meio mês para chegar ao destino.

Do interior do nosso táxi vemos, ao longe, ruínas dos incas.

Em companhia de Melinda, sentei-me numa das muralhas do forte de Puca-Pucara. Estava tudo absolutamente calmo; não havia sopro de vento. O sol brilhava sobre as montanhas dos Andes e as pedras incaicas. Tudo era estranho e diferente do Brasil. Cada pedra tinha um significado especial e corríamos os dedos sobre elas, como um colecionador examina suas moedas.

Em Puca-Pucara Francisco Souto Neto observa uma índia trabalhando numa tapeçaria, sentada ao chão.

Vi uma índia que, sentada ao chão ao lado do filho pequeno, tecia uma rústica tapeçaria, e fui fotografado por Rafaelle ao lado dela. Em seguida, ela me disse que queria uma ‘limosna’. ‘O que é uma limosna, Melinda?’. Minha amiga respondeu com um gesto, rindo: ‘É isto...’ e retirou da bolsa um sol, dando-o à velha índia. Claro, repeti o gesto...

Um túnel incaico. Rafaelle está em seu interior, Melinda tenta entrar, e sua irmã Joanne parece estar meio indecisa.

Há em Puca-Pucara um túnel que dizem que iria até Cusco. Entramos no apertado túnel apenas alguns metros, um de cada vez e retornamos imediatamente. Iria até Cusco? Não acredito. Essa fortaleza é a única construída com pedras pequenas.

Francisco Souto Neto sentado nas pedras de Puca-Pucara.

Meus amigos em Puca-Pucara.

Francisco Souto Neto entre Melinda e Rafaelle em Puca-Pucara.

O caminho para chegar a Tambomachay.

Francisco Souto Neto em Tambomachay, a única fonte incaica que ainda jorra água.

Nossa visita seguinte foi a Tambomachay, a única fonte incaica que ainda jorra água. Há uma lenda que diz que quem dela beber terá muitos filhos. Todos bebemos daquela água, mas porque estávamos com sede. Ali ao lado da fonte havia uns dez carrões com turistas os mais diversos, dentre eles alguns amigos da travessia do Titicaca. Notei a presença de uma americana típica, gorda e loura, com chapéu cor de abóbora parecido com um funil enterrado na cabeça, batom escarlate, enormes óculos pretos com enfeites brancos (moda ‘op’), blusão azul, calça comprida barata e tênis sujos. Ela era às vezes meio engraçada, mas também bastante antipática. Melinda mostrou-me uma atriz americana no meio daquele grupo, obscura no Brasil; seria miss... Marlowe? Marlowe ou algo parecido, já quarentona, sofisticada e charmosa. Vi os primeiros lhamas que toquei, e lá se foram algumas limosnas para os indiozinhos.

Depois fomos até às ruínas de Kenko, outro centro arqueológico a 3.580 metros de altitude. Este templo está localizado sobre o que hoje se conhece como o Monte Socorro e engloba uma área de pouco mais de 3.500 metros quadrados. Durante o Império Inca foi um centro dedicado ao rito religioso e são de particular interesse seu anfiteatro de forma semi-circular e suas galerias subterrâneas.

Souto Neto em Kenko.

Entrada para o templo de Kenko entalhada na rocha.

No interior do templo de Kenko, o altar para sacrifícios.

Rafaelle e Melinda seguem à minha frente, pelos caminhos difíceis.

Este é o deus de Kenko, de um período anterior ao incaico.
 

Não se conhece o nome original deste templo. Os conquistadores espanhóis lhe deram o nome de Kenko, palavra quíchua que significa "labirinto", devido às galerias subterrâneas.

Este monumento foi qualificado como um anfiteatro, pois tem uma construção semicircular. Na realidade, se ignora a finalidade desta construção, que pode ter sido utilizada como altar, um tribunal ou uma tumba. Presume-se que foi um dos santuários mais importantes da era inca.

Paisagem cusquenha.

Nosso táxi estaciona para podermos apreciar, à distância, a Fortaleza de Sacsayhuamán.

 

Sacsayhuamán é uma enorme fortaleza construída no alto da montanha que domina Cusco. Sua fachada tem 800 metros de comprimento. Mas a muralha exterior, incluídas sobras e vanguardeiras, estende-se por mais de três quilômetros. As pedras usadas em sua construção têm altura de seis metros na base, diminuindo gradativamente de tamanho, até ao quarto andar do edifício.

 Garcilaso de da Vega, escritor do século XVI, conta em sua obra “Comentários Reales”, que as pedras internas da fortaleza eram cobertas de ouro e prata e adornadas de baixos-relevos que representavam plantas e animais. E conclui que Sacsayhuamán superava as sete maravilhas do Mundo Antigo.


 
Melinda Mills está falando sobre Sacsayhuamán.

Chegamos à fantástica fortaleza. Esta foto publiquei no livro “Minerva” organizado pelo Prof. Robert Karel Bowles, editado em 1968, na página 192, ilustrando um artigo que escrevi sobre os Incas.

Uma das entradas de Sacsayhuamán.

O relógio-calendário no alto da fortaleza.

Os caminhos da fortaleza. Lá ao longe está o Impala, nosso táxi estacionado.

Um dos caminhos que ligavam Sacsayhuamán a Cusco.

Começamos a ir embora.

Francisco Souto Neto recostado numa das admiráveis paredes de pedras de Sacsayhuamán.

 

Magnífica e quase inconcebível é a engenharia dos Incas: as pedras dos edifícios têm muitos ângulos para encaixes e são sobrepostas sem argamassa. Os incas não conheciam o ferro e, no entanto, descobriram uma técnica que lhes possibilitou trabalhar as pedras com maestria: perfeitamente lisas e justapostas, entre uma e outra não há espaço para se introduzir sequer uma lâmina. Pergunta-se: de onde eles trouxeram as pedras? Num raio de dezenas de quilômetros não há pedras daquela natureza. E como puderam transportá-las para o alto das montanhas, sem conhecer a roda, nem a roldana? Se cavalos para puxá-las eram desconhecidos? São perguntas que nunca terão resposta: as construções dos incas lá estão e a sua engenharia continuará a desafiar os milênios e a lógica moderna.

Muito cansado, fui deitar-me muito cedo. Antes de me recolher, avisei aos meus amigos que no dia seguinte não os veria, porque passaria o dia inteiro em viagem de ida e volta a um dos momentos mais expressivos de minhas férias: iria sozinho conhecer a ‘cidade perdida’ de Machu Picchu, distante duas horas de trem desde Cusco. E depois de amanhã viajaria para Lima, capital do Peru. Talvez não voltasse a vê-los. Melinda estava mais bela do que nunca. Trocamos endereços e abraçamo-nos como quem se despede de velhos amigos. 

E vida e novas aventuras a seguir...

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