domingo, 13 de março de 2022

VIAGEM PELA AMÉRICA DO SUL EM 1967 - 7ª PARTE - NAVEGANDO NO TITICACA, por Francisco Souto Neto,

 

 
Francisco Souto Neto viajando de navio pelo Lago Titicaca entre Bolívia e Peru.

 

Comendador Francisco Souto Neto

 

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VIAGEM PELA AMÉRICA DO SUL EM 1967

 

7ª PARTE


NAVEGANDO NO TITICACA

por  Francisco Souto Neto

 

Esta é uma transcrição do meu diário da viagem que fiz a vários países da América do Sul em 1967, iniciada na semana em que completei 24 anos de idade. Passados 55 anos, é interessante observar os detalhes de como eram feitas as viagens naquele tempo e as impressões que os lugares causaram a este então jovem viajante. A transcrição do meu diário de viagem vai entre aspas, e quando eu achar necessário intervir no texto, farei isto entre colchetes.

 

DE GUAQUI (BOLÍVIA) A PUNO (PERU)

 

“Eram 17:30 horas quando a litorina chegou a Guaqui e um navio esperava os passageiros a apenas uns 15 passos dali. Éramos 17 passageiros que viemos pela litorina.

A bordo do navio no Lago Titicaca.

Na entrada do navio, um oficial recolheu passaportes, passagens e vistos de entrada no Peru. O navio era bem melhor do que eu esperava. Desci as escadas, adornadas com metal dourado brilhante, e cheguei a uma sala com poltronas. Sobre uma das mesas, um bloco com impressos que todos deveríamos preencher. De ambos os lados, em corredores, estavam os camarotes. O oficial determinava os camarotes dos passageiros e informou que eu e o italiano Enrico Rafaelle Longo compartilharíamos a mesma cabine. Uma chave dourada com um palmo de comprimento era da porta do camarote. Entramos e achei que aquele espaço era muito parecido com as cabines dos trens da Estrada de Ferro Sorocabana, que ligava minha cidade natal de Presidente Venceslau, SP, à capital do estado, só que mais espaçoso: além das camas (em forma de beliche), tínhamos uma pia, mesa com duas cadeiras e um sofá, sobre o qual colocamos nossas malas. Sentados à mesa, preenchemos nossos formulários. A janela da cabine era redonda... como são sempre as escotilhas. Tudo eu achei pitoresco.

A escotilha da minha cabine.

Subi ao convés, mas não encontrei Melinda, que certamente estaria em seu camarote. Lá fiz amizade com outro casal, que veio na mesma litorina desde La Paz: Ronald e Susan Lehman. [Sobre este casal, muito falarei mais tarde]. Ele parece ter uns 19 anos e ela 18. Susan tem, em tudo, o jeito da Mildred Lange: a maneira de falar, as expressões, os gestos, e até um pouco dos traços fisionômicos. O casal fala espanhol bem pausadamente, mas correto.

Francisco Souto Neto começando a navegação pelo Titicaca.

O navio zarpou às 18:30, hora da Bolívia. O sol se pôs. Foi uma belíssimo crepúsculo. Fotografei-o. São coisas que ficarão em minha memória por toda a vida.

Partindo rumo à imensidão do Titicaca.

Partindo rumo à imensidão do Titicaca.

Guaqui perdeu-se no horizonte. A viagem duraria 13 horas. Fomos convidados ao jantar. Descemos ao grande salão adornado com espelhos de cristal. Sentamo-nos a uma mesa em forma de U e foi servida uma deliciosa sopa de tomate. Eu estava eufórico, curado do ‘soroche’. Puxei conversa com meus vizinhos e logo todos confraternizávamos. Em seguida serviram um delicioso risoto, seguido de filé com arroz. Tomei Crush. A sobremesa foi compota de pêssego. No final veio o cafezinho, tudo incluso no preço da passagem.

Como em todo lugar, as pessoas interessaram-se pelo Brasil, e mostrei-lhes os cartões postais. Somente os postais (claro que somente os postais e não as fotografias), que foram apreciadíssimos. Falamos sobre política e Rafaelle contou-me que na Europa Carlos Lacerda é conhecido como “mata mendigos”, Juscelino  como o mais moderno faraó do mundo, e Adhemar de Barros como um dos maiores ladrões que já existiram na política. Vejam só que propaganda negativa para o Brasil, porém infelizmente verdadeira. Rafaelle, que nunca viajou ao Brasil, repetiu uma frase do Adhemar: ‘...ele disse: eu realmente roubei, mas também realizei muitas obras’. Que vexame para o Brasil. Outros também falaram sobre a 'Revolução' de 1964, mas Rafaelle é quem está mais bem informado e disse que o que houve no Brasil foi na verdade um golpe militar, que é o que de fato aconteceu, e que o atual presidente General Costa e Silva, está se revelando um tirano. A gente pensa que o que acontece no Brasil fica no nosso quintal, mas não é assim: o mundo fica sabendo às vezes mais do que nós mesmos, principalmente quando existe ‘censura oficial’, como está havendo aqui. Quanta vergonha!

Procurei me distanciar da ampliação da conversa sobre política. Subi ao convés... e que espetáculo presenciei: era noite e a Lua acabara de nascer, deixando sobre o Titicaca um rastro de prata líquida. Nunca me esquecerei daquilo. Mas nada havia de romântico: o termômetro  no tombadilho marcava 4°. Entretanto, eu estava super protegido da cabeça aos pés.

Somente o casal Ronald e Susan, eu, Rafaelle e Boris aguardamos no convés pela passagem do Esteito de Tiquina, o que se deu às 23:00 horas bolivianas. Ronald e Susan sabiam da existência dos meus cadernos e guias de viagem com prospectos e dados coletados por mim, e perguntavam-me muitas coisas, como se eu já conhecesse o Titicaca e o Peru. E agora, como já estávamos em águas peruanas, atrasei mais uma hora em meu relógio: era outro fuso horário que eu acabava de atravessar.

[Uma observação que estou acrescentando em 2022: na navegação de Guaqui a Puno, eu e os demais passageiros do navio pensávamos que a fronteira entre Bolívia e Peru fosse no Estreito de Tiquina, porém somente agora, pesquisando nos mapas do Google, descobria que a fronteira localiza-se cerca de 50 quilômetros após Tiquina]

O PERU

Desci e fui investigar o navio. Descobri que ele tem 15 camarotes com dois leitos cada, e mais um sofá, o que significa que eventualmente uma cabine pode comportar três passageiros se de uma mesma família. O total de camas, portanto, se incluirmos os sofás, é de 73. Entretanto, há turistas estrangeiros que estão viajando neste navio e não compraram camarotes; assim, não têm camas onde dormir. Onde dormem? Nos sofás das áreas públicas. Acho isso bem estranho. 

A embarcação praticamente não jogava e era preciso olhar pela escotilha para perceber que estávamos navegando. Era um navio confortável. Lá pela década de 30 ou 40 deve ter sido uma embarcação de luxo. Notei, numa placa, que o navio é inglês. Como será que fizeram um navio desse tamanho chegar àquela altura, isto é, a mais de 3.800 metros? Desmontado? Será possível?!

O Titicaca é o lago mais alto do mundo. E é gigantesco: seus 10.369 km² perdem-se no horizonte; ele é oito vezes maior que o Estado da Guanabara. Às vezes eu divisava luzes de vilas ao lado esquerdo. Esta é a região mais povoada do planalto andino. Riachos alimentados pelas geleiras da Cordilheira lançam-se neste verdadeiro mar interior que é o Titicaca.

O navio sulcava as águas do grande lago. Como a noite era de lua cheia, eu podia observar as altíssimas montanhas além das margens mais distantes. Por ali creio que haja vulcões adormecidos. A Lua era como um brilhante num oceano negro... noite inesquecível.

Fui deitar-me somente às duas horas, não porque não tivesse sono, mas porque a travessia do Titicaca era uma nova experiência e eu queria vivê-la ao máximo. O Rafaelle estava dormindo no leito de cima. Foi muito gentil, sendo ele o mais velho, por deixar o leito baixo para mim. O camareiro deixara meu leito pronto e percebi que a roupa de cama tinha perfume de sabão: era bem limpa. Ao deitar-me, senti como se me encaixasse num espaço oco côncavo: o colchão não era reto, e havia em seu centro uma reentrância do meu tamanho. Era a memória que o colchão tinha de milhares de passageiros anteriores que dormiram ali, afundando-se no referido colchão, e sem querer moldando-o com seus corpos. Mesmo assim, tão cansado estava, que me parece que dormi instantaneamente.

Meu subconsciente acordou-me às 5 da manhã, pois eu queria ver a alvorada. Rafaelle roncava. Subi ao convés e fui à popa. Vi quando o Sol surgiu das águas do Titicaca;  foi uma alvorada de grande beleza, apresentando maravilhosos jogos de luzes e cores.

O sol nascendo nas águas peruanas do Lago Titicaca.

Logo depois começaram a subir os turistas e conversávamos como se fôssemos velhos amigos. Lembrei-me de que durante a noite acordei algumas vezes com braços e pernas dormentes. Igual fenômeno ocorrera-me muitas vezes em La Paz. Explicação: devido à altitude, o coração não tem força suficiente para bombar o sangue... e a circulação diminui. Eu precisava fazer massagens nas pernas, o que não era fácil tendo ambas as mãos dormentes.

Francisco Souto Neto com Enrico Rafaelle Longo, o genovês que conhece 72 países.

A partir da esquerda: Rafaelle, Mrs. Rosteck com a filha Maida, e Melinda olhando para trás.

Muito ao longe, um índio em sua totora.

Dois lhamas na margem.

Susan sorri aos ver os lhamas e Ronald Lehman corre com sua câmera para fotografá-los.

Fiquei observando que Puno se aproximava. Fotografei algumas totoras, que são as embarcações de junco feitas pelos indígenas, caracerísticas do Titicaca. Descemos para o desjejum. Sentei-me ao lado de uma senhora elegante, de cabelos brancos que viajava com uma filha balzaquiana. Essa senhora lembrava vagamente a minha avó Mãe Nina. Mãe e filha eram norte-americanas. Voltamos ao convés, portando nossas bagagens. Nas margens havia lhamas, bonitos animais, que fotografei. 

Eram 8 horas quando a nossa embarcação atracou no porto de Puno. Fomos convidados a descer mais uma vez ao grande salão do navio, para as formalidades do passaporte. Éramos 2 bolivianos, 1 italiano, 11 americanos, 2 alemães e eu, o único brasileiro. Fomos chamados um por um para a entrega dos passaportes. O comissário de polícia disse meu nome com pronúncia tão carregada, que não compreendi. Melinda deu-me um cutucão: ‘Vá; é você’.

Após visados os passaportes, desembarcamos e fomos à aduana. Se a “cerimônia” dos vistos nos passaportes foi tão formal, a aduana – para compensar – foi informalíssima. Ao lado da aduana estava o trem que nos levaria a Cusco.

Uma nova experiência vai começar.

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