PORTAL IZA ZILLI
No delírio da Revolução Francesa, a Deusa da Razão pisa sobre a cruz.
Iza Zilli
Maria
Antonieta: prisão e guilhotina
(2ª
parte – Final)
Francisco Souto Neto
Algumas vezes, em viagens à Europa,
tenho seguido os passos de personagens históricos. Esta é a vantagem de
viajar-se por conta própria, sem excursões organizadas por agências de turismo,
e por isso ter a liberdade de ir onde quiser e ali ficar pelo tempo que sentir
vontade. Foi assim que estive em alguns lugares onde viveu Maria Antonieta, a
trágica rainha de França, conforme narrei em minha coluna anterior denominada
“Maria Antonieta: um casamento sem amor e le
Hameau de la Reine”. Hoje comentarei os últimos dias da rainha e sua morte
na guilhotina.
FOTO 1 – Embora popularmente
conhecida entre nós como “Maria Antonieta”, seu nome em português é grafado
corretamente como “Maria Antônia Josefa Joana de Habsburgo-Lorena. Em alemão é Maria Antonia Josepha Johanna von
Habsburg-Lothringen (os dois primeiros nomes são mesmo latinos) e em francês Marie-Antoinette
Josèphe Jeanne de Habsbourg-Lorraine (o nome composto pronuncia-se “marrí
antoanéte”).
Maria Antonieta e Luís XVI tiveram
quatro filhos: Maria Teresa (1778-1851), Luís José (1781-1789), Luís Carlos
(1785-1795) e Sofia (1786-1787). Sobreviveu à Revolução Francesa somente a
primogênita Maria Teresa. Luís José e Sofia morreram na infância. Luís Carlos,
que deveria vir a ser o rei Luís XVII, morreu também na infância, mas já órfão
e no cárcere, com apenas 10 anos.
FOTO 2 – Rainha Maria
Antonieta em 1787 com seus três filhos. A pintura feita por Madame Le Brun
estava praticamente pronta, quando a recém-nascida Sofia morreu. Então o berço restou
vazio, coberto com um tecido preto.
FOTO 3 – O rei Luís XVI
nesta mesma época.
A França atravessava um período de
grande crise e o povo sentia-se oprimido pelos impostos, pela pobreza e até
mesmo pela fome. Todos se rebelavam contra os privilégios dos nobres e a
excessiva riqueza da família real. Insuflados por panfletos falsos, consideravam
Maria Antonieta perdulária e apontavam-na como a fonte de todos os males.
FOTO 4 – Em seu último
retrato oficial (1788) pintado por Elisabeth Vigée-Le Brun (ou Madame Le Brun),
Maria Antonieta aparece com vestidos bem mais simples (para simbolizar
austeridade) lendo um livro. Ela buscava melhorar a sua imagem pública.
O
caso do colar
Foi quando surgiu o escândalo do
colar. O joalheiro da corte, Boehmer, pensava ter vendido um caríssimo colar de
centenas de brilhantes à rainha, que teria tido o cardeal de Rohan como avalista,
e ambos foram cobrar a dívida a Maria Antonieta. Na verdade, ocorreu uma fraude
arquitetada pela condessa Joanne de la Motte-Valois, que contratou uma atriz,
Nicole d’Oliva, que se vestiu de Maria Antonieta e que nas sombras da noite,
nos jardins do palácio, conseguiu enganar o joalheiro e o avalista e recebeu o
colar como se fosse a soberana. Ambos pensavam ter feito um negócio com a
rainha. Esta, a verdadeira Maria Antonieta, indignada por ser cobrada de uma
dívida por ela desconhecida, pediu a prisão de ambos, sem saber que eles eram
também vítimas de uma fraude. A história do colar é bastante complexa e extensa
demais para ser pormenorizada por mim neste espaço, mas poderá ser encontrada
nos livros da História da França, na internet e até mesmo num filme que, dentre
os vários que foram feitos sobre esse fato histórico, o que me parece mais fiel
à realidade chama-se “O Enigma do Colar” (“The
Affair of the Necklace”).
FOTO 5 – Capa do DVD “O
Enigma do Colar” (“The Affair of the
Necklace”).
FOTO 6 – Esta é uma réplica
do famoso colar. Para a estética dos nossos dias, a peça parece feia e até
grotesca, mas no século XVIII era considerado um colar bonito e elegante.
O boato que correu de boca em boca
através do país inteiro, era de que a rainha tinha comprado aquele colar
enquanto o povo passava necessidades. Inventaram também que ao se comentar com
a rainha que o povo não tinha pão para comer, ela teria respondido: “Se eles
não têm pão, que comam bolo”. Não se atribui o surgimento da Revolução Francesa
somente ao ódio à rainha. Sua origem é muito mais ampla e profunda, e disto não
me ocuparei neste texto. Basta lembrar apenas que os franceses estavam
rebelados contra o absolutismo e a riqueza excessiva dos nobres em contraponto
à miséria do povo. Os princípios da Revolução foram válidos, porque baseados em
“liberdade, igualdade e fraternidade”. O problema é que esses princípios foram
rapidamente desprezados e o povo, fanatizado e ignorante, descambou para a
violência e fez dar início a um dos períodos mais negros da História Mundial,
que foi a oficialização do Terror.
A
prisão da família real
Em 6 de outubro de 1789, uma multidão
furiosa de mulheres trabalhadoras, incitadas por revolucionários e por eles
seguidas, marchou contra Versalhes, matou os guardas suíços e invadiu o
palácio.
FOTO 7 – A família real
acuada pela multidão furiosa que, uivando de ódio igualitário, invadia o
palácio.
O casal real e os filhos foram presos
na Torre do Templo. Passaram-se três anos enquanto corriam os processos contra
a nobreza. Alguns artistas retrataram Maria Antonieta na prisão, certos de que
seus trabalhos teriam importância naquele momento e em futuro próximo.
FOTO 8 – Retrato de Maria
Antonieta em pastel, de 1792, inacabado, porque enquanto Alexandre Kucharski
trabalhava nele, a rainha foi transferida para uma cela da terrível prisão de
La Conciergerie, e o artista não teve mais acesso à prisioneira.
Foi nessa ocasião que se iniciaram os
Massacres de Setembro de 1792, que simbolizam o terrorismo como instrumento de
controle do poder. Em Paris e em várias cidades da França, os revoltosos
começaram a invadir as prisões para matar os prisioneiros políticos. A matança
estendeu-se a padres e a pessoas comuns que apresentassem sinais de riqueza. O
símbolo mais contundente da violência dos Massacres de 1792 é a doce princesa
de Lamballe.
A
princesa de Lamballe
A princesa de Lamballe era a mais
íntima amiga de Maria Antonieta. Os registros históricos têm-na como um exemplo
de caráter e honestidade.
FOTO 9 – Maria Teresa Luísa
de Sabóia (em francês Marie-Thérèse-Louise
de Savoie-Carignan), a princesa de Lamballe.
Ela foi massacrada
ao sair para o pátio da prisão. Segundo um historiador, “a princesa de Lamballe foi morta na sequência de um
equívoco atroz: ao sair para o pátio da prisão, ela teria passado mal, e os
assassinos à espreita, armados com pedaços de pau e lanças, acreditando que ela
já teria levado o primeiro golpe, mataram-na com suas armas”. Em seguida degolaram-na e espetaram
sua cabeça numa estaca, que foi levada pela turba furiosa até à janela da cela
onde Maria Antonieta estava presa. Ao ver a cabeça da amiga, a rainha sofreu
uma vertigem e caiu desmaiada.
FOTO 10 – A princesa de
Lamballe assassinada
FOTO 11 – O povo dança ante a cabeça da
princesa de Lamballe numa estaca, sendo levada à janela da cela de Maria Antonieta para
ser vista pela rainha.
Deus
é abolido, dando lugar à Deusa da Razão
Dentre as insanidades da Primeira
República Francesa, está a abolição de Deus e a introdução da Deusa da Razão
como um símbolo do novo Culto da Razão. Padres e rabinos foram mortos, assim
como seus seguidores. Igrejas e sinagogas foram saqueadas, a cruz foi retirada
de todos os locais onde existia, e os portões dos cemitérios deveriam ter
somente uma inscrição: “A morte é um sono eterno”. O Culto da Razão, mais do
que a renúncia a Deus ou a mais deuses, era uma forma de religião convencional.
A descristianização espalhou-se pela França, e as igrejas foram transformadas
em templos para o Culto da Razão.
O primeiro Festival da Razão foi realizado
simultaneamente em todo o país no dia 10 de novembro de 1793, organizado por Jacques
Hébert e Antoine-François Momoro. Desmontaram o altar da Catedral de Notre-Dame
e em seu lugar instalaram o altar à Liberdade. O protocolo tomou várias horas e
terminou com a aparição da Deusa da Razão que, para evitar idolatria, foi
apresentada como uma mulher comum.
FOTO 12 – Procissão da Deusa
da Razão pelas ruas de Paris em 1793, por Henri Renaud.
FOTO 13 – Deusa da Razão em
procissão por Paris, óleo sobre tela de Charles Louis Müller (1878).
FOTO 14 – Detalhe do pé da
Deusa da Razão, da tela anterior, por Charles Louis Müller (1878).
No ano seguinte, 1794, Robespierre,
que detinha poderes ditatoriais e que diariamente condenava à morte muitas
pessoas “suspeitas”, achou melhor acabar com o Culto da Razão, e em seu lugar
instituiu o Culto ao Ser Supremo. Herbert, Momoro e centenas de outros adeptos
da Deusa da Razão foram mandados por ele para a guilhotina. Ambos os cultos coexistiram
entre respectivos fanáticos, até serem oficialmente extintos por Napoleão I no
começo do século seguinte.
Mas voltemos a Maria Antonieta.
Os últimos dias da rainha
O rei Luís XVI, condenado à morte, foi
executado na guilhotina em 21 de janeiro de 1793. Em 2 de agosto do mesmo ano a
rainha, agora chamada de “Viúva Capeto”, foi transferida para a sinistra Conciergerie,
onde ela chegou muito doente e com hemorragia. A pintora Sophie Prieur
retratou-a em sua cela usando luto e com o rosto sofrido e envelhecido.
FOTO 15– “A Viúva Capeto na
Conciergerie”, por Sophie Prieur.
Em 14 de outubro foi julgada perante o
Tribunal Revolucionário, onde foi acusada de todos os problemas da França.
Quarenta e uma testemunhas a denegriram e insultaram, acusando-a dos maiores
absurdos, até de manter uma relação incestuosa com o filho (também prisioneiro)
que estava então com 7 ou 8 anos. Ela se defendeu de todas as acusações com
vigor e sem nenhuma contradição. Entretanto o seu julgamento era uma farsa e os
juízes já estavam previamente combinados para condená-la à morte por
unanimidade. Ela ouviu a sentença em silêncio.
Deram-lhe material para escrever seu
testamento, e ela escreveu uma carta à sua cunhada, que é hoje um comovente
documento de amor e respeito a seus familiares e amigos.
Eu estive na Conciergerie, conheci a
cela onde Maria Antonieta esteve presa, agora transformada em capela. Ao lado
dessa capela recriaram o ambiente original do cubículo, com o catre onde a
rainha dormia, vigiada dia e noite por um guarda armado, em pé atrás de um
biombo que chegava até somente à altura dos ombros do soldado.
A capela tem agora um altar. A janela
alta, que dá para a calçada de uma rua por onde as pessoas passavam e gritavam
insultos contra a prisioneira, conta hoje com um belo vitral contendo as
iniciais de Maria Antonieta.
FOTO 16 – A reconstituição
da cela da rainha, com as figuras em cera de Maria Antonieta, de luto, com a
bílblia nas mãos, observada por um soldado.
FOTO 17 – Nesta pintura
vê-se o soldado abaixado atrás do biombo e pessoas que, passando pela rua, insultam e
cospem na rainha através da grade da janela.
FOTO 18 – A cela original da
rainha, hoje uma capela.
FOTO 19 – A grade da janela
foi substituída por um vitral com as iniciais de Maria Antonieta.
Numa das viagens a Paris, fiz um filme
em VHS que resumi a apenas três minutos, mostrando a Conciergerie e a cela
original de Maria Antonieta, hoje transformada em Capela Expiatória, e ao lado
a reconstituição da cela, com a figura de Maria Antonieta de cera, vestida de luto
pela morte de Luís XVI. Eis o filminho no YouTube:
A
morte
Dois dias depois prepararam a rainha
para a morte. Proibiram-na de pôr o seu vestido preto de luto, porque os
condenados eram obrigados a usar roupa branca. Ela então trajou a sua camisola,
que era a única peça branca que tinha para cobrir o corpo. Alguém cortou
grosseiramente seu cabelo à altura da nuca e pôs-lhe um gorro. A porta por onde
ela saiu da Conciergerie é hoje a entrada para um café frequentado pelas
pessoas que visitam aquele prédio. Eu atravessei o portão que é antecedido de
alguns degraus, e vi o local onde um carro de madeira, ou uma charrete aberta,
esperava por ela.
FOTO 20 – A rainha saindo da
Conciergerie rumo ao patíbulo.
Ela teve as mãos amarradas às costas,
sentou-se na banqueta do carro de madeira de duas rodas e foi levada pelas ruas
de Paris rumo à hoje chamada Place de La Concorde. Quando ela passou pelo
prédio da Rue St. Honoré, onde se encontrava o artista Jacques-Louis David, ele
fez um esboço de como viu a rainha.
FOTO 21 – O pintor David
desenhando a passagem da rainha na charrete dos condenados. Óleo dobre tela de
Joseph-Emmanuel van den Büssche.
FOTO 22 – Esboço de David: a
rainha sendo levada ao patíbulo.
FOTO 23 – A execução da
rainha Maria Antonieta e sua cabeça espetada numa lança. Artista desconhecido.
Ao subir ao patíbulo, Maria Antonieta
acidentalmente pisou no pé do carrasco. Disse-lhe: “Desculpe, senhor, foi sem
querer”.
Após a execução, o corpo foi colocado
num caixão e a cabeça entre as suas pernas. Seus restos mortais foram
enterrados em vala comum no Cemitério de Madeleine, na Rue d’Anjou. Quando a notícia
correu a Europa, todos os países decretaram luto.
Através de muitas pesquisas eu descobri
o local exato, na Place de la Concorde, onde esteve instalada a guilhotina no
dia da morte de Maria Antonieta. Poucas pessoas sabem que aquele foi um lugar
de muita dor e desespero.
O filho, delfim de França, que deveria
ser um rei sob o nome de Luís XVII, continuou preso por mais dois anos após a
execução da rainha e morreu aos 10 anos no cárcere.
FOTO 24 – O herdeiro do
trono morreu no cárcere aos 10 anos, provavelmente vitimado de doença
infecciosa.
Depois
do Reino do Terror
A História da França é cheia de “idas
e vindas”. Após o Terror, com a guilhotina fazendo brotar rios de sangue, e com
o próprio e cruel Robespierre guilhotinado, veio a era napoleônica. O general
Napoleão Bonaparte coroou-se imperador da França com o nome de Napoleão I, e
passou a viver com o mesmíssimo fausto e luxo dos tempos do Rei-Sol.
Depois de Napoleão, o Congresso de
Viena levou os Bourbons de volta ao trono francês, e – quem diria? – o conde de
Provença, irmão do rei Luís XVI guilhotinado, foi aclamado rei da França com o
nome de Luís XVIII. Conta um historiador: “Logo ao assumir o trono, o novo soberano procurou
dar um enterro digno ao irmão e à cunhada. Seus corpos foram encontrados graças
ao advogado Pierre Louis Descloreaux, que vivia na rue d'Anjou à época dos
sepultamentos e lembrava-se da localização da vala comum. Os restos de Maria
Antonieta foram encontrados em 18 de janeiro de 1815. Embora o corpo estivesse
reduzido a uma pilha de ossos, sua cabeça permanecia intacta. Os restos do rei
foram encontrados no dia seguinte”.
Em 21 de janeiro de 1815 os restos
mortais de Maria Antonieta foram depositados na Basílica de Saint Denis. Em
1816 o rei Luís XVIII mandou erigir um túmulo dentro da referida basílica, cujo
projeto foi realizado por Pierre Pétiot, que resultou numa belíssima obra de
arte.
FOTO 25 – Os túmulos de Luís XVI e de
Maria Antonieta na Basílica de Saint Denis.
Depois de Luís XVIII, que foi
deposto, Napoleão I voltou a governar a França... e anos depois abdicou pela
segunda vez. E após isso, quem volta ao trono? O mesmo rei Luís XVIII, em 1815,
e lá permaneceu até a sua morte em 1824. Sucedeu-o seu filho que levou o nome
de Carlos X e que seis anos depois, em 1830, abdicou. Seu sucessor foi o rei
Luís Felipe I, cujo pai, também Luís Felipe, Duque d’Orleãs, havia apoiado a
Revolução Francesa, e mesmo assim foi guilhotinado durante o Reino do Terror.
Ainda jovem, Luís Felipe I fugiu e passou 21 anos no exílio e foi declarado rei
em 1830, depois de Carlos X ter sido forçado a abdicar. Mas também ele, Luís
Felipe I, foi forçado a abdicar em 1848. E quem o sucedeu? Foi Napoleão III,
neto do primeiro Napoleão, e governou por 22 anos até ter sido deposto em
1870...
Sem dúvida, uma história cheia de
idas e vindas. A partir daí, distante apenas 30 anos do século XX, “tout se modifique”, como dizem os franceses...
Mas ficou uma lição para o mundo: o povo manda, sim. As elites que aprendam que
são minoria e que o sofrimento e a luta pela subsistência das pessoas menos
favorecidas merecem respeito e atenção.
FIM
Gostei muito, obrigado.
ResponderExcluirCara Lavínia Batista, muito obrigado por sua delicadeza em me escrever. Seja sempre bem-vinda. Um abraço.
ExcluirAmei! Principalmente pela riqueza de detalhes.
ResponderExcluirCara Renata Ladislau, agradeço-lhe muito por suas palavras de estímulo. Fico muito feliz por haver leitores que possam gostar das minhas memórias. Obrigado. Um abraço.
ExcluirAdorei! Obrigado por partilhar.
ResponderExcluirCaro Fernando Oliveira, Obrigado por ter gostado. Um abraço.
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