quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

"MARIA ANTONIETA: PRISÃO E GUILHOTINA (2ª parte - Final)" coluna do Comendador FRANCISCO SOUTO NETO no PORTAL IZA ZILLI.

PORTAL IZA ZILLI

No delírio da Revolução Francesa, a Deusa da Razão pisa sobre a cruz.

Iza Zilli

Comendador FRANCISCO SOUTO NETO


Maria Antonieta: prisão e guilhotina
(2ª parte – Final)

Francisco Souto Neto


Algumas vezes, em viagens à Europa, tenho seguido os passos de personagens históricos. Esta é a vantagem de viajar-se por conta própria, sem excursões organizadas por agências de turismo, e por isso ter a liberdade de ir onde quiser e ali ficar pelo tempo que sentir vontade. Foi assim que estive em alguns lugares onde viveu Maria Antonieta, a trágica rainha de França, conforme narrei em minha coluna anterior denominada “Maria Antonieta: um casamento sem amor e le Hameau de la Reine”. Hoje comentarei os últimos dias da rainha e sua morte na guilhotina.

FOTO 1 – Embora popularmente conhecida entre nós como “Maria Antonieta”, seu nome em português é grafado corretamente como “Maria Antônia Josefa Joana de Habsburgo-Lorena. Em alemão é Maria Antonia Josepha Johanna von Habsburg-Lothringen (os dois primeiros nomes são mesmo latinos) e em francês Marie-Antoinette Josèphe Jeanne de Habsbourg-Lorraine (o nome composto pronuncia-se “marrí antoanéte”).

Maria Antonieta e Luís XVI tiveram quatro filhos: Maria Teresa (1778-1851), Luís José (1781-1789), Luís Carlos (1785-1795) e Sofia (1786-1787). Sobreviveu à Revolução Francesa somente a primogênita Maria Teresa. Luís José e Sofia morreram na infância. Luís Carlos, que deveria vir a ser o rei Luís XVII, morreu também na infância, mas já órfão e no cárcere, com apenas 10 anos.

FOTO 2 – Rainha Maria Antonieta em 1787 com seus três filhos. A pintura feita por Madame Le Brun estava praticamente pronta, quando a recém-nascida Sofia morreu. Então o berço restou vazio, coberto com um tecido preto.

 FOTO 3 – O rei Luís XVI nesta mesma época.

A França atravessava um período de grande crise e o povo sentia-se oprimido pelos impostos, pela pobreza e até mesmo pela fome. Todos se rebelavam contra os privilégios dos nobres e a excessiva riqueza da família real. Insuflados por panfletos falsos, consideravam Maria Antonieta perdulária e apontavam-na como a fonte de todos os males.

FOTO 4 – Em seu último retrato oficial (1788) pintado por Elisabeth Vigée-Le Brun (ou Madame Le Brun), Maria Antonieta aparece com vestidos bem mais simples (para simbolizar austeridade) lendo um livro. Ela buscava melhorar a sua imagem pública.

O caso do colar

Foi quando surgiu o escândalo do colar. O joalheiro da corte, Boehmer, pensava ter vendido um caríssimo colar de centenas de brilhantes à rainha, que teria tido o cardeal de Rohan como avalista, e ambos foram cobrar a dívida a Maria Antonieta. Na verdade, ocorreu uma fraude arquitetada pela condessa Joanne de la Motte-Valois, que contratou uma atriz, Nicole d’Oliva, que se vestiu de Maria Antonieta e que nas sombras da noite, nos jardins do palácio, conseguiu enganar o joalheiro e o avalista e recebeu o colar como se fosse a soberana. Ambos pensavam ter feito um negócio com a rainha. Esta, a verdadeira Maria Antonieta, indignada por ser cobrada de uma dívida por ela desconhecida, pediu a prisão de ambos, sem saber que eles eram também vítimas de uma fraude. A história do colar é bastante complexa e extensa demais para ser pormenorizada por mim neste espaço, mas poderá ser encontrada nos livros da História da França, na internet e até mesmo num filme que, dentre os vários que foram feitos sobre esse fato histórico, o que me parece mais fiel à realidade chama-se “O Enigma do Colar” (“The Affair of the Necklace”).

FOTO 5 – Capa do DVD “O Enigma do Colar” (“The Affair of the Necklace”).

FOTO 6 – Esta é uma réplica do famoso colar. Para a estética dos nossos dias, a peça parece feia e até grotesca, mas no século XVIII era considerado um colar bonito e elegante.

O boato que correu de boca em boca através do país inteiro, era de que a rainha tinha comprado aquele colar enquanto o povo passava necessidades. Inventaram também que ao se comentar com a rainha que o povo não tinha pão para comer, ela teria respondido: “Se eles não têm pão, que comam bolo”. Não se atribui o surgimento da Revolução Francesa somente ao ódio à rainha. Sua origem é muito mais ampla e profunda, e disto não me ocuparei neste texto. Basta lembrar apenas que os franceses estavam rebelados contra o absolutismo e a riqueza excessiva dos nobres em contraponto à miséria do povo. Os princípios da Revolução foram válidos, porque baseados em “liberdade, igualdade e fraternidade”. O problema é que esses princípios foram rapidamente desprezados e o povo, fanatizado e ignorante, descambou para a violência e fez dar início a um dos períodos mais negros da História Mundial, que foi a oficialização do Terror.

A prisão da família real

Em 6 de outubro de 1789, uma multidão furiosa de mulheres trabalhadoras, incitadas por revolucionários e por eles seguidas, marchou contra Versalhes, matou os guardas suíços e invadiu o palácio.

FOTO 7 – A família real acuada pela multidão furiosa que, uivando de ódio igualitário, invadia o palácio.

O casal real e os filhos foram presos na Torre do Templo. Passaram-se três anos enquanto corriam os processos contra a nobreza. Alguns artistas retrataram Maria Antonieta na prisão, certos de que seus trabalhos teriam importância naquele momento e em futuro próximo.

FOTO 8 – Retrato de Maria Antonieta em pastel, de 1792, inacabado, porque enquanto Alexandre Kucharski trabalhava nele, a rainha foi transferida para uma cela da terrível prisão de La Conciergerie, e o artista não teve mais acesso à prisioneira.

 Foi nessa ocasião que se iniciaram os Massacres de Setembro de 1792, que simbolizam o terrorismo como instrumento de controle do poder. Em Paris e em várias cidades da França, os revoltosos começaram a invadir as prisões para matar os prisioneiros políticos. A matança estendeu-se a padres e a pessoas comuns que apresentassem sinais de riqueza. O símbolo mais contundente da violência dos Massacres de 1792 é a doce princesa de Lamballe.

A princesa de Lamballe

A princesa de Lamballe era a mais íntima amiga de Maria Antonieta. Os registros históricos têm-na como um exemplo de caráter e honestidade.

FOTO 9 – Maria Teresa Luísa de Sabóia (em francês Marie-Thérèse-Louise de Savoie-Carignan), a princesa de Lamballe.

Ela foi massacrada ao sair para o pátio da prisão. Segundo um historiador, “a princesa de Lamballe foi morta na sequência de um equívoco atroz: ao sair para o pátio da prisão, ela teria passado mal, e os assassinos à espreita, armados com pedaços de pau e lanças, acreditando que ela já teria levado o primeiro golpe, mataram-na com suas armas”. Em seguida degolaram-na e espetaram sua cabeça numa estaca, que foi levada pela turba furiosa até à janela da cela onde Maria Antonieta estava presa. Ao ver a cabeça da amiga, a rainha sofreu uma vertigem e caiu desmaiada.


FOTO 10 – A princesa de Lamballe assassinada


FOTO 11 – O povo dança ante a cabeça da princesa de Lamballe numa estaca, sendo levada à janela da cela de Maria Antonieta para ser vista pela rainha.

Deus é abolido, dando lugar à Deusa da Razão

Dentre as insanidades da Primeira República Francesa, está a abolição de Deus e a introdução da Deusa da Razão como um símbolo do novo Culto da Razão. Padres e rabinos foram mortos, assim como seus seguidores. Igrejas e sinagogas foram saqueadas, a cruz foi retirada de todos os locais onde existia, e os portões dos cemitérios deveriam ter somente uma inscrição: “A morte é um sono eterno”. O Culto da Razão, mais do que a renúncia a Deus ou a mais deuses, era uma forma de religião convencional. A descristianização espalhou-se pela França, e as igrejas foram transformadas em templos para o Culto da Razão.

O primeiro Festival da Razão foi realizado simultaneamente em todo o país no dia 10 de novembro de 1793, organizado por Jacques Hébert e Antoine-François Momoro. Desmontaram o altar da Catedral de Notre-Dame e em seu lugar instalaram o altar à Liberdade. O protocolo tomou várias horas e terminou com a aparição da Deusa da Razão que, para evitar idolatria, foi apresentada como uma mulher comum.

FOTO 12 – Procissão da Deusa da Razão pelas ruas de Paris em 1793, por Henri Renaud.

FOTO 13 – Deusa da Razão em procissão por Paris, óleo sobre tela de Charles Louis Müller (1878).

FOTO 14 – Detalhe do pé da Deusa da Razão, da tela anterior, por Charles Louis Müller (1878).

No ano seguinte, 1794, Robespierre, que detinha poderes ditatoriais e que diariamente condenava à morte muitas pessoas “suspeitas”, achou melhor acabar com o Culto da Razão, e em seu lugar instituiu o Culto ao Ser Supremo. Herbert, Momoro e centenas de outros adeptos da Deusa da Razão foram mandados por ele para a guilhotina. Ambos os cultos coexistiram entre respectivos fanáticos, até serem oficialmente extintos por Napoleão I no começo do século seguinte.


Mas voltemos a Maria Antonieta. 

Os últimos dias da rainha

O rei Luís XVI, condenado à morte, foi executado na guilhotina em 21 de janeiro de 1793. Em 2 de agosto do mesmo ano a rainha, agora chamada de “Viúva Capeto”, foi transferida para a sinistra Conciergerie, onde ela chegou muito doente e com hemorragia. A pintora Sophie Prieur retratou-a em sua cela usando luto e com o rosto sofrido e envelhecido.

FOTO 15– “A Viúva Capeto na Conciergerie”, por Sophie Prieur.

Em 14 de outubro foi julgada perante o Tribunal Revolucionário, onde foi acusada de todos os problemas da França. Quarenta e uma testemunhas a denegriram e insultaram, acusando-a dos maiores absurdos, até de manter uma relação incestuosa com o filho (também prisioneiro) que estava então com 7 ou 8 anos. Ela se defendeu de todas as acusações com vigor e sem nenhuma contradição. Entretanto o seu julgamento era uma farsa e os juízes já estavam previamente combinados para condená-la à morte por unanimidade. Ela ouviu a sentença em silêncio.
Deram-lhe material para escrever seu testamento, e ela escreveu uma carta à sua cunhada, que é hoje um comovente documento de amor e respeito a seus familiares e amigos.


Eu estive na Conciergerie, conheci a cela onde Maria Antonieta esteve presa, agora transformada em capela. Ao lado dessa capela recriaram o ambiente original do cubículo, com o catre onde a rainha dormia, vigiada dia e noite por um guarda armado, em pé atrás de um biombo que chegava até somente à altura dos ombros do soldado.
A capela tem agora um altar. A janela alta, que dá para a calçada de uma rua por onde as pessoas passavam e gritavam insultos contra a prisioneira, conta hoje com um belo vitral contendo as iniciais de Maria Antonieta.

FOTO 16 – A reconstituição da cela da rainha, com as figuras em cera de Maria Antonieta, de luto, com a bílblia nas mãos, observada por um soldado.

FOTO 17 – Nesta pintura vê-se o soldado abaixado atrás do biombo e pessoas que, passando pela rua, insultam e cospem na rainha através da grade da janela.

FOTO 18 – A cela original da rainha, hoje uma capela.

FOTO 19 – A grade da janela foi substituída por um vitral com as iniciais de Maria Antonieta.


Numa das viagens a Paris, fiz um filme em VHS que resumi a apenas três minutos, mostrando a Conciergerie e a cela original de Maria Antonieta, hoje transformada em Capela Expiatória, e ao lado a reconstituição da cela, com a figura de Maria Antonieta de cera, vestida de luto pela morte de Luís XVI. Eis o filminho no YouTube:


A morte

Dois dias depois prepararam a rainha para a morte. Proibiram-na de pôr o seu vestido preto de luto, porque os condenados eram obrigados a usar roupa branca. Ela então trajou a sua camisola, que era a única peça branca que tinha para cobrir o corpo. Alguém cortou grosseiramente seu cabelo à altura da nuca e pôs-lhe um gorro. A porta por onde ela saiu da Conciergerie é hoje a entrada para um café frequentado pelas pessoas que visitam aquele prédio. Eu atravessei o portão que é antecedido de alguns degraus, e vi o local onde um carro de madeira, ou uma charrete aberta, esperava por ela.

FOTO 20 – A rainha saindo da Conciergerie rumo ao patíbulo.

Ela teve as mãos amarradas às costas, sentou-se na banqueta do carro de madeira de duas rodas e foi levada pelas ruas de Paris rumo à hoje chamada Place de La Concorde. Quando ela passou pelo prédio da Rue St. Honoré, onde se encontrava o artista Jacques-Louis David, ele fez um esboço de como viu a rainha.

FOTO 21 – O pintor David desenhando a passagem da rainha na charrete dos condenados. Óleo dobre tela de Joseph-Emmanuel van den Büssche.

FOTO 22 – Esboço de David: a rainha sendo levada ao patíbulo.

FOTO 23 – A execução da rainha Maria Antonieta e sua cabeça espetada numa lança. Artista desconhecido.

Ao subir ao patíbulo, Maria Antonieta acidentalmente pisou no pé do carrasco. Disse-lhe: “Desculpe, senhor, foi sem querer”.

Após a execução, o corpo foi colocado num caixão e a cabeça entre as suas pernas. Seus restos mortais foram enterrados em vala comum no Cemitério de Madeleine, na Rue d’Anjou. Quando a notícia correu a Europa, todos os países decretaram luto.

Através de muitas pesquisas eu descobri o local exato, na Place de la Concorde, onde esteve instalada a guilhotina no dia da morte de Maria Antonieta. Poucas pessoas sabem que aquele foi um lugar de muita dor e desespero.

O filho, delfim de França, que deveria ser um rei sob o nome de Luís XVII, continuou preso por mais dois anos após a execução da rainha e morreu aos 10 anos no cárcere.

FOTO 24 – O herdeiro do trono morreu no cárcere aos 10 anos, provavelmente vitimado de doença infecciosa.

Depois do Reino do Terror

A História da França é cheia de “idas e vindas”. Após o Terror, com a guilhotina fazendo brotar rios de sangue, e com o próprio e cruel Robespierre guilhotinado, veio a era napoleônica. O general Napoleão Bonaparte coroou-se imperador da França com o nome de Napoleão I, e passou a viver com o mesmíssimo fausto e luxo dos tempos do Rei-Sol.

Depois de Napoleão, o Congresso de Viena levou os Bourbons de volta ao trono francês, e – quem diria? – o conde de Provença, irmão do rei Luís XVI guilhotinado, foi aclamado rei da França com o nome de Luís XVIII. Conta um historiador: “Logo ao assumir o trono, o novo soberano procurou dar um enterro digno ao irmão e à cunhada. Seus corpos foram encontrados graças ao advogado Pierre Louis Descloreaux, que vivia na rue d'Anjou à época dos sepultamentos e lembrava-se da localização da vala comum. Os restos de Maria Antonieta foram encontrados em 18 de janeiro de 1815. Embora o corpo estivesse reduzido a uma pilha de ossos, sua cabeça permanecia intacta. Os restos do rei foram encontrados no dia seguinte”.

Em 21 de janeiro de 1815 os restos mortais de Maria Antonieta foram depositados na Basílica de Saint Denis. Em 1816 o rei Luís XVIII mandou erigir um túmulo dentro da referida basílica, cujo projeto foi realizado por Pierre Pétiot, que resultou numa belíssima obra de arte.

FOTO 25 – Os túmulos de Luís XVI e de Maria Antonieta na Basílica de Saint Denis.

Depois de Luís XVIII, que foi deposto, Napoleão I voltou a governar a França... e anos depois abdicou pela segunda vez. E após isso, quem volta ao trono? O mesmo rei Luís XVIII, em 1815, e lá permaneceu até a sua morte em 1824. Sucedeu-o seu filho que levou o nome de Carlos X e que seis anos depois, em 1830, abdicou. Seu sucessor foi o rei Luís Felipe I, cujo pai, também Luís Felipe, Duque d’Orleãs, havia apoiado a Revolução Francesa, e mesmo assim foi guilhotinado durante o Reino do Terror. Ainda jovem, Luís Felipe I fugiu e passou 21 anos no exílio e foi declarado rei em 1830, depois de Carlos X ter sido forçado a abdicar. Mas também ele, Luís Felipe I, foi forçado a abdicar em 1848. E quem o sucedeu? Foi Napoleão III, neto do primeiro Napoleão, e governou por 22 anos até ter sido deposto em 1870...

Sem dúvida, uma história cheia de idas e vindas. A partir daí, distante apenas 30 anos do século XX, “tout se modifique”, como dizem os franceses... Mas ficou uma lição para o mundo: o povo manda, sim. As elites que aprendam que são minoria e que o sofrimento e a luta pela subsistência das pessoas menos favorecidas merecem respeito e atenção.

FIM

P.S.: Faço menção à rainha Maria Antonieta (Marie Antoinette) no artigo "BARBARA HUTTON E SEU VANADIS, HOJE HOTEL FLUTUANTE MÄLARDROTTNIGEN, EM ESTOCOLMO", iate este no qual hospedei-me numa das minhas estadas na capital da Suécia, neste link:

6 comentários:

  1. Gostei muito, obrigado.

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    1. Cara Lavínia Batista, muito obrigado por sua delicadeza em me escrever. Seja sempre bem-vinda. Um abraço.

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  2. Amei! Principalmente pela riqueza de detalhes.

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    1. Cara Renata Ladislau, agradeço-lhe muito por suas palavras de estímulo. Fico muito feliz por haver leitores que possam gostar das minhas memórias. Obrigado. Um abraço.

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