segunda-feira, 11 de dezembro de 2017

BELA GRAFIA E MÁ GRAFIA por FRANCISCO SOUTO NETO para o PORTAL IZA ZILLI.


O calígrafo Ricardo Freire fazendo uma dedicatória num livro.

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Iza Zilli

Comendador Francisco Souto Neto

Bela grafia e má grafia

Francisco Souto Neto

“Caligrafia” vem do grego κάλλος (kállos), que significa “beleza”, e  γραφή (grafí), que quer dizer “escrita”. Portanto, a própria palavra tem o sentido de “bela letra”. Será redundante  portanto incorreto  dizer-se: “ele tem uma bela caligrafia”, porque toda caligrafia é sempre bela. Do mesmo modo será errado dizer-se: “ela tem uma feia caligrafia”, porque se a letra é feia, não poderá ser chamada de caligrafia. O correto seria dizer-se: “ela tem uma feia grafia” ou, mais objetivamente, “ela tem a letra feia”. Assim, “se a pessoa tem a letra feia, precisa aprender ou praticar caligrafia”.

A caligrafia do meu bisavô

Ao fazer pesquisas no Rio de Janeiro, na companhia de minha prima Lúcia Helena Souto Martini, para o livro que escrevemos em coautoria sobre a biografia do nosso trisavô, o Visconde de Souto, vimo-nos cercados de manuscritos de meados do século XIX. Naquela época, por volta de 1850, escrevia-se com canetas feitas de pena de ganso. As crianças que recebiam esmerada educação, aprendiam a desenvolver uma admirável caligrafia. Eu e Lúcia Helena encontramos exemplo disso na Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro, onde está arquivado o requerimento de meu bisavô Francisco José Alves Souto, o 6º filho do Visconde de Souto, dirigido ao Vigário Capitular do Rio de Janeiro, pedindo permissão para casar-se com sua primeira esposa (Maria Luíza de França e Silva) na capela particular de seu pai, o Visconde, na sua residência que era conhecida como “Chácara do Souto”.

É muito impressionante a caligrafia do meu bisavô. As suas letras maiúsculas são todas notabilíssimas. Observe-se no requerimento que ele dirigiu ao Vigário Capitular do Rio de Janeiro em 19 de fevereiro de 1868:

Foto 1 – Requerimento de próprio punho, escrito por Francisco José Alves Souto em 19 de fevereiro de 1868.

 
Foto 2 – Detalhe da assinatura de Francisco José Alves Souto.

Vou abrir parênteses no tema, apenas porque acredito que será oportuno lembrar que desse matrimônio nasceu em janeiro de 1872 o primogênito Francisco José Alves Souto Filho, que faleceu em Petrópolis no dia 9 de abril do mesmo ano de 1872, onde está sepultado, e que é hoje conhecido como “Anjinho de Petrópolis”, a quem são atribuídos graças e milagres. No ano de 1873 o casal viajou a Portugal para visitas a parentes, onde Maria Luíza adoeceu e veio a óbito.

Graças a pesquisas de meu primo João Eduardo Teixeira Mendes, um português que reside no Reino Unido, descobri que Francisco José sepultou Maria Luíza no Cemitério do Alto de São João, em Lisboa, onde mandou erigir um jazigo muito bonito, o “Jazigo de Família de Francisco José Alves Souto”, com o seguinte epitáfio: “Aqui jaz Maria Luíza Silva Souto, nascida na cidade do Rio de Janeiro, Império do Brasil, a 11 de abril de 1848, falecida em Lisboa a 8 de agosto de 1873.  À sua memória, dedica este monumento o seu esposo Francisco José Alves Souto”.

Foto 3 – Túmulo da família Francisco José Alves Souto no Cemitério do Alto de São João, em Lisboa.

 
Foto 4 – Detalhe do túmulo.

 
Foto 5 – O epitáfio de Maria Luíza Silva Souto: “À sua memória, dedica este monumento o seu esposo Francisco José Alves Souto”.

Foto 6 –  O túmulo no contexto das sepulturas vizinhas.

Meu bisavô retornou viúvo ao Brasil. Alguns anos depois conheceu a jovem Maria da Lapa de Salles Oliveira, com quem se casou (ela passou a assinar “de Salles Souto”), e dessa união nasceu meu avô Francisco Souto Júnior.

A caligrafia no nascimento da Caixa Econômica

Outro notável exemplo de caligrafia está numa das atas da criação da Caixa Econômica, cujo original encontra-se no Museu da CEF em Brasília. Meu trisavô, António José Alves Souto, fez parte da primeira diretoria daquela instituição. Note-se que a ata, assinada pelo secretário, o veador José Joaquim de Lima e Silva Sobrinho, é datada de 16 de maio de 1861, quando Antônio José Alves Souto era ainda conhecido como “comendador Souto”, porque somente a partir do ano seguinte, 1862 ele passou a ser tratado por “visconde de Souto” devido a ter-lhe sido outorgado esse título por D. Luís I, rei de Portugal, em decreto de 12 de dezembro de 1862.

Foto 7 – Ata de reunião da Caixa Econômica de 16 de maio de 1861.

Para facilitar a compreensão do leitor, transcrevo a ata, adiante, com a ortografia vigente neste começo do século XXI:

Ata da Reunião do Conselho Fiscal e Inspetor da Caixa Econômica e Monte de Socorro. Aos dezesseis dias do mês de maio de mil oitocentos e sessenta e um, em sala franqueada pelo Sr. Comendador António José Alves Souto na casa de sua residência na Rua Direita, sendo presentes os Exmºs Srs. visconde de Bonfim, barão de Itamaraty, veador José Joaquim de Lima e Silva Sobrinho. O Exmº Sr. Presidente visconde de Albuquerque declarou que o Governo Imperial de posse da planta e orçamento das despesas das obras que se tem de fazer na casa destinada para a Caixa Econômica e Monte de Socorro, havia aprovado tanto a planta como o dito orçamento, mas faltando ainda participação oficial, era necessário por ela esperar, mesmo para se exigir do respectivo Ministro a quantia suficiente para a mesma obra. O Sr. Comendador António José Alves Souto, solícito e oficioso como costuma ser, ofereceu-se desde logo ordenar as obras e fiscalizar os trabalhos. Aceita com agradecimento tão generosa oferta, passou o Conselho a fazer a nomeação dos empregados que faltavam. Para lugar de guarda-livros foi nomeado José Narciso de Oliveira; para avaliador, Antonio José de Souza Almeida; e para contínuo sem vencimentos de ordenado, Paulino Manoel d’Oliveira. E por nada haver mais do que tratar, deu por finda a sessão da qual se lavrou esta ata. / Visconde d’Albuquerque. / J. J. de Lima e Silva Sobrinho – Secretário.

A caligrafia na metade do século XX

No meu 1º ano do curso primário, em 1951, éramos alfabetizados usando lápis e borracha. No segundo semestre daquele ano, lembro-me muito bem, eu e todos os meus coleguinhas fomos surpreendidos de manhã ao encontrarmos tinteiros encaixados em nossas carteiras, e uma pena. Tratava-se de uma caneta com corpo de madeira – que pela tradição continuava sendo chamada de “pena” – mas a ponta era de metal. Ao lado desse material, encontrei várias folhas de mata-borrão. E foi assim que aprendemos a usar a pena, mergulhando-a no tinteiro e, é claro, derramando gotas pela carteira, caderno, mãos... tudo sendo secado com os providenciais mata-borrões. Nossos dedos ficavam permanentemente manchados de azul. Os adultos usavam canetas-tinteiro, mas estas não eram objetos para crianças em fase de alfabetização. Ganhei de meu pai a minha primeira caneta-tinteiro quando estava no 3º ano primário. A caneta esferográfica seria inventada alguns anos depois. Durante todos os anos do curso primário, uma das matérias era caligrafia. Por isso, tudo o que escrevíamos era bonito e inteligível.

A feia grafia neste século XXI

Tudo mudou. Até a maneira de escrever “século XXI”, porque os números dos séculos eram escritos obrigatoriamente em algarismos romanos, porém hoje escreve-se em arábicos, de maneira bem prosaica: “século 21”. Entretanto a prática da caligrafia vem caindo no desuso e a no desinteresse não apenas das novas gerações.

Vou praticar uma pequena maldade com um dos meus médicos que, bem a propósito, é competentíssimo na sua profissão e, coisa rara nos dias atuais, trata-se de um gentleman. Considero-o um amigo. Mas a sua letra não é uma caligrafia. É, como dizíamos no passado, uma garatuja. É claro que não vou revelar o nome do meu médico, nem a sua especialidade, mas apenas mostrar um exemplo de letra ruim na ilustração abaixo.

Foto 8 – Exemplo de letra quase ilegível.

A terceira e a quarta linhas são as mais difíceis de entender. No laboratório de análises clínicas, a reação da atendente foi divertida, quando perguntei-lhe se conseguia compreender quais os exames que estavam sendo solicitados. Respondeu ela: “Socorro, que alguns médicos querem me enlouquecer”.

Já o meu médico cardiologista vale-se de um sistema muito mais prático: suas requisições são todas feitas pelo computador e assim, obviamente, em letras impressas.

A caligrafia (a bela, obviamente) neste século XXI

Uma exposição no Museu Oscar Niemeyer - MON (apelidado “Museu do Olho”), que teve uma duração de cerca de três anos (de 2014 a 2017) mostrando o acervo de arte do antigo Banestado, homenageou-me ao contar um pouco da minha história profissional do tempo em que atuei no extinto banco oficial do Paraná nos cargos de assessor de diretores, de presidentes e também como assessor para assuntos de cultural da referida instituição bancária.

Foto 9 – Na exposição do MON, Francisco Souto Neto com a diretora do museu tendo, na parede, referências a seu trabalho como assessor da presidência do Banestado.

Foto 10 – Referências estampadas nas paredes.

Foto 11 – Mais referências.

O MON lançou um livro perpetuando essa exposição. Ricardo Freire, que trabalha no museu e que na época assessorava a ex-diretora Teca Sandrini, veio à minha residência trazendo para mim um exemplar da obra. Como sei que Ricardo é um dos mais importantes calígrafos do Paraná, pedi-lhe que fizesse uma dedicatória... o que ele fez muito gentilmente. Abaixo, a sequência fotográfica da dedicatória com sua caligrafia de rara beleza.

Foto 12 – O livro “Museu Oscar Niemeyer”, no qual há referências a Souto Neto.

Foto 13 – No interior do livro, fotos da exposição.


Foto 14 – Nas páginas do livro, referências a Souto Neto.

Foto 15 – Ricardo Freire acomodando-se para fazer a dedicatória. Na parede, retratos (telas) de Francisco Souto Júnior e Arary Souto, avô e pai de Francisco Souto Neto.

Foto 16 – Iniciando a dedicatória.

Foto 17 – Terminada a dedicatória.

Foto 18– Ricardo, Souto e o livro.

No próximo ano, em março, quando nos reunirmos na Academia de Letras José de Alencar, que será o nosso primeiro encontro de 2018, pretendo levar o livro acima, para que os meus colegas acadêmicos possam admirar um raro modelo de caligrafia... num exemplo a ser aplaudido e seguido.


-o-

2 comentários:

  1. Parabéns! O texto está espetacular.
    Graças a minha mãe, tive grande incentivo para melhorar a minha grafia. Tenho uma letra muito bonita e já escrevi nomes de noivos e noivas em convites, bem como nome de formandos.

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    1. Querida Dione Mara, você tem, de fato, uma admirável caligrafia. É uma caligrafia em toda a acepção da palavra. Meu bisavô (seu trisavô) se orgulharia.

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