O calígrafo Ricardo Freire fazendo uma dedicatória num livro.
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Comendador Francisco Souto Neto
Bela grafia e má grafia
Francisco Souto Neto
“Caligrafia”
vem do grego κάλλος (kállos), que significa “beleza”,
e γραφή (grafí), que quer dizer
“escrita”. Portanto, a própria palavra tem o sentido de “bela letra”. Será
redundante – portanto incorreto – dizer-se: “ele tem uma bela caligrafia”, porque toda caligrafia é
sempre bela. Do mesmo modo será errado dizer-se: “ela tem uma feia caligrafia”,
porque se a letra é feia, não poderá ser chamada de caligrafia. O correto seria
dizer-se: “ela tem uma feia grafia” ou, mais objetivamente, “ela tem a letra
feia”. Assim, “se a pessoa tem a letra feia, precisa aprender ou praticar
caligrafia”.
A caligrafia do meu bisavô
Ao fazer pesquisas no Rio de Janeiro, na companhia de minha prima Lúcia
Helena Souto Martini, para o livro que escrevemos em coautoria sobre a
biografia do nosso trisavô, o Visconde de Souto, vimo-nos cercados de
manuscritos de meados do século XIX. Naquela época, por volta de 1850,
escrevia-se com canetas feitas de pena de ganso. As crianças que recebiam
esmerada educação, aprendiam a desenvolver uma admirável caligrafia. Eu e Lúcia
Helena encontramos exemplo disso na Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro, onde
está arquivado o requerimento de meu bisavô Francisco José Alves Souto, o 6º filho do
Visconde de Souto, dirigido ao Vigário Capitular do Rio de Janeiro, pedindo permissão para casar-se com sua primeira esposa (Maria Luíza de França
e Silva) na capela particular de seu pai, o Visconde, na sua residência que era
conhecida como “Chácara do Souto”.
É muito impressionante a caligrafia do meu bisavô. As suas letras
maiúsculas são todas notabilíssimas. Observe-se no requerimento que ele dirigiu ao
Vigário Capitular do Rio de Janeiro em 19 de fevereiro de 1868:
Foto
1 – Requerimento de próprio punho, escrito por Francisco José Alves Souto em 19 de
fevereiro de 1868.
Foto
2 – Detalhe da assinatura de Francisco José Alves Souto.
Vou abrir parênteses no tema,
apenas porque acredito que será oportuno lembrar que desse matrimônio nasceu em janeiro de
1872 o primogênito Francisco José Alves Souto Filho, que faleceu em Petrópolis
no dia 9 de abril do mesmo ano de 1872, onde está sepultado, e que é hoje
conhecido como “Anjinho de Petrópolis”, a quem são atribuídos graças e
milagres. No ano de 1873 o casal viajou a Portugal para visitas a parentes,
onde Maria Luíza adoeceu e veio a óbito.
Graças a pesquisas de meu primo João Eduardo Teixeira Mendes, um
português que reside no Reino Unido, descobri que Francisco José sepultou Maria Luíza no
Cemitério do Alto de São João, em Lisboa, onde mandou erigir um jazigo muito
bonito, o “Jazigo de Família de Francisco José Alves Souto”, com o seguinte
epitáfio: “Aqui jaz Maria Luíza Silva Souto, nascida na cidade do Rio de
Janeiro, Império do Brasil, a 11 de abril de 1848, falecida em Lisboa a 8 de
agosto de 1873. À sua memória, dedica
este monumento o seu esposo Francisco José Alves Souto”.
Foto
3 – Túmulo da família Francisco José Alves Souto no Cemitério do Alto de São
João, em Lisboa.
Foto
4 – Detalhe do túmulo.
Foto
5 – O epitáfio de Maria Luíza Silva Souto: “À sua memória, dedica este
monumento o seu esposo Francisco José Alves Souto”.
Foto 6 – O túmulo no contexto das sepulturas vizinhas.
Meu bisavô retornou viúvo ao
Brasil. Alguns anos depois conheceu a jovem Maria da Lapa de Salles Oliveira,
com quem se casou (ela passou a assinar “de Salles Souto”), e dessa união
nasceu meu avô Francisco Souto Júnior.
A
caligrafia no nascimento da Caixa Econômica
Outro notável exemplo de
caligrafia está numa das atas da criação da Caixa Econômica, cujo original
encontra-se no Museu da CEF em Brasília. Meu trisavô, António José Alves Souto,
fez parte da primeira diretoria daquela instituição. Note-se que a ata,
assinada pelo secretário, o veador José Joaquim de Lima e Silva Sobrinho, é
datada de 16 de maio de 1861, quando Antônio José Alves Souto era ainda conhecido
como “comendador Souto”, porque somente a partir do ano seguinte, 1862 ele
passou a ser tratado por “visconde de Souto” devido a ter-lhe sido outorgado
esse título por D. Luís I, rei de Portugal, em decreto de 12 de dezembro de
1862.
Foto 7 – Ata de
reunião da Caixa Econômica de 16 de maio de 1861.
Para facilitar a compreensão do
leitor, transcrevo a ata, adiante, com a ortografia vigente neste começo do
século XXI:
Ata da Reunião do Conselho Fiscal e Inspetor da Caixa Econômica e
Monte de Socorro. Aos dezesseis dias do mês de maio
de mil oitocentos e sessenta e um, em sala franqueada pelo Sr. Comendador
António José Alves Souto na casa de sua residência na Rua Direita, sendo
presentes os Exmºs Srs. visconde de Bonfim, barão de Itamaraty, veador José
Joaquim de Lima e Silva Sobrinho. O Exmº Sr. Presidente visconde de Albuquerque
declarou que o Governo Imperial de posse da planta e orçamento das despesas das
obras que se tem de fazer na casa destinada para a Caixa Econômica e Monte de
Socorro, havia aprovado tanto a planta como o dito orçamento, mas faltando
ainda participação oficial, era necessário por ela esperar, mesmo para se
exigir do respectivo Ministro a quantia suficiente para a mesma obra. O Sr.
Comendador António José Alves Souto, solícito e oficioso como costuma ser,
ofereceu-se desde logo ordenar as obras e fiscalizar os trabalhos. Aceita com
agradecimento tão generosa oferta, passou o Conselho a fazer a nomeação dos
empregados que faltavam. Para lugar de guarda-livros foi nomeado José Narciso
de Oliveira; para avaliador, Antonio José de Souza Almeida; e para contínuo sem
vencimentos de ordenado, Paulino Manoel d’Oliveira. E por nada haver mais do
que tratar, deu por finda a sessão da qual se lavrou esta ata. / Visconde
d’Albuquerque. / J. J. de Lima e Silva Sobrinho – Secretário.
A
caligrafia na metade do século XX
No meu 1º ano do curso
primário, em 1951, éramos alfabetizados usando lápis e borracha. No segundo
semestre daquele ano, lembro-me muito bem, eu e todos os meus coleguinhas fomos
surpreendidos de manhã ao encontrarmos tinteiros encaixados em nossas
carteiras, e uma pena. Tratava-se de uma caneta com corpo de madeira – que pela
tradição continuava sendo chamada de “pena” – mas a ponta era de metal. Ao lado
desse material, encontrei várias folhas de mata-borrão. E foi assim que
aprendemos a usar a pena, mergulhando-a no tinteiro e, é claro, derramando
gotas pela carteira, caderno, mãos... tudo sendo secado com os providenciais
mata-borrões. Nossos dedos ficavam permanentemente manchados de azul. Os
adultos usavam canetas-tinteiro, mas estas não eram objetos para crianças em
fase de alfabetização. Ganhei de meu pai a minha primeira caneta-tinteiro
quando estava no 3º ano primário. A caneta esferográfica seria inventada alguns
anos depois. Durante todos os anos do curso primário, uma das matérias era
caligrafia. Por isso, tudo o que escrevíamos era bonito e inteligível.
A
feia grafia neste século XXI
Tudo mudou. Até a maneira de
escrever “século XXI”, porque os números dos séculos eram escritos
obrigatoriamente em algarismos romanos, porém hoje escreve-se em arábicos, de
maneira bem prosaica: “século 21”. Entretanto a prática da caligrafia vem
caindo no desuso e a no desinteresse não apenas das novas gerações.
Vou praticar uma pequena
maldade com um dos meus médicos que, bem a propósito, é competentíssimo na sua
profissão e, coisa rara nos dias atuais, trata-se de um gentleman. Considero-o um amigo. Mas a sua letra não é uma
caligrafia. É, como dizíamos no passado, uma garatuja. É claro que
não vou revelar o nome do meu médico, nem a sua especialidade, mas apenas
mostrar um exemplo de letra ruim na ilustração abaixo.
Foto 8 – Exemplo de
letra quase ilegível.
A terceira e a quarta linhas
são as mais difíceis de entender. No laboratório de análises clínicas, a reação
da atendente foi divertida, quando perguntei-lhe se conseguia compreender quais
os exames que estavam sendo solicitados. Respondeu ela: “Socorro, que alguns
médicos querem me enlouquecer”.
Já o meu médico cardiologista
vale-se de um sistema muito mais prático: suas requisições são todas feitas
pelo computador e assim, obviamente, em letras impressas.
A
caligrafia (a bela, obviamente) neste século XXI
Uma exposição no Museu Oscar
Niemeyer - MON (apelidado “Museu do Olho”), que teve uma duração de cerca de três
anos (de 2014 a 2017) mostrando o acervo de arte do antigo Banestado,
homenageou-me ao contar um pouco da minha história profissional do tempo em que
atuei no extinto banco oficial do Paraná nos cargos de assessor de diretores,
de presidentes e também como assessor para assuntos de cultural da referida
instituição bancária.
Foto 9 – Na exposição
do MON, Francisco Souto Neto com a diretora do museu tendo, na parede,
referências a seu trabalho como assessor da presidência do Banestado.
Foto 10 – Referências
estampadas nas paredes.
Foto 11 – Mais
referências.
O MON lançou um livro perpetuando
essa exposição. Ricardo Freire, que trabalha no museu e que na época
assessorava a ex-diretora Teca Sandrini, veio à minha residência trazendo para
mim um exemplar da obra. Como sei que Ricardo é um dos mais importantes
calígrafos do Paraná, pedi-lhe que fizesse uma dedicatória... o que ele fez
muito gentilmente. Abaixo, a sequência fotográfica da dedicatória com sua
caligrafia de rara beleza.
Foto 12 – O livro
“Museu Oscar Niemeyer”, no qual há referências a Souto Neto.
Foto 13 – No interior do livro, fotos da exposição.
Foto 14 – Nas páginas do livro, referências a Souto Neto.
Foto 15 – Ricardo
Freire acomodando-se para fazer a dedicatória. Na parede, retratos (telas) de Francisco Souto Júnior e Arary Souto, avô e pai de Francisco Souto Neto.
Foto 16 – Iniciando a
dedicatória.
Foto 17 – Terminada a dedicatória.
Foto 18– Ricardo, Souto e o livro.
No próximo ano, em março,
quando nos reunirmos na Academia de Letras José de Alencar, que será o nosso
primeiro encontro de 2018, pretendo levar o livro acima, para que os meus
colegas acadêmicos possam admirar um raro modelo de caligrafia... num exemplo a
ser aplaudido e seguido.
-o-
Parabéns! O texto está espetacular.
ResponderExcluirGraças a minha mãe, tive grande incentivo para melhorar a minha grafia. Tenho uma letra muito bonita e já escrevi nomes de noivos e noivas em convites, bem como nome de formandos.
Querida Dione Mara, você tem, de fato, uma admirável caligrafia. É uma caligrafia em toda a acepção da palavra. Meu bisavô (seu trisavô) se orgulharia.
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