Iza Zilli
Comendador FRANCISCO SOUTO NETO
Um sonho surrealista com Juarez
Machado
e a mudança do curso da minha vida
Francisco Souto Neto
Prólogo
Um
sonho pode mudar o curso de uma vida, e isto aconteceu comigo. Porém antes de
relatar tal sonho, ocorrido no ano de 1978, devo retroceder ao ano anterior,
quando conheci os desenhos de Chico Lopes, um artista autodidata de Novo
Horizonte, interior de São Paulo. Fiquei impressionado com o trabalho que
aquele jovem realizava com caneta esferográfica sobre papel. Comprei dele
alguns desenhos. De volta a Curitiba, levei-os ao Ennio Marques Ferreira que na
ocasião era presidente da Fundação Cultural de Curitiba, para perguntar-lhe da
possibilidade de realizar uma exposição com os trabalhos do artista que a meu
ver merecia divulgação. O Ennio mostrou-se entusiasmado com aquela arte e me
adiantou que o conselho consultivo da Fundação Cultural sem dúvida o incluiria
no calendário dos expositores para o ano seguinte... e foi o que aconteceu.
FOTO 1 – Cartaz-convite para a exposição de Chico Lopes.
FOTO 2 - Elogios a Chico Lopes por Francisco Souto Neto e Rubens Faria Gonçalves.
FOTO 1 – Cartaz-convite para a exposição de Chico Lopes.
FOTO 2 - Elogios a Chico Lopes por Francisco Souto Neto e Rubens Faria Gonçalves.
Seria
aquela a primeira exposição de Chico Lopes. Ele me pediu para escrever a sua
apresentação ao público de Curitiba, e solicitou o mesmo a Rubens Faria
Gonçalves, de quem ele já conhecia alguns textos e os apreciava. Ambos manifestamos
nossas opiniões sobre os desenhos, Chico aprovou-os e a Fundação Cultural
providenciou o belíssimo cartaz-convite para a mostra, que foi inaugurada em 31
de agosto de 1978.
Por
volta daqueles dias, realizava-se no BADEP uma exposição coletiva de artistas
catarinenses denominada “Arte Barriga Verde”. Eu era Assessor de Diretor do
Banestado e trabalhava na Rua Monsenhor Celso, onde estavam instaladas as
diretorias e a presidência do banco oficial do Paraná. No intervalo do almoço
fui ver a exposição que alguém me recomendara.
Uma
das telas chamou minha atenção. A pintura mostrava duas vacas sobre uma cama, e
na cômoda ao lado havia uma cruz. Achei aquele surrealismo muito divertido. Fui
olhar a assinatura e encontrei o nome do artista Juarez Machado, que então era
um profissional já conhecido porque tinha uma página de charges ou desenhos de
humor intelectualizado numa revista semanal, não me recordo se O Cruzeiro ou
Manchete, e um quadro de mímica ou pantomima no programa Fantástico da Rede
Globo, que era muito apreciado. Eu sabia que Juarez Machado era catarinense e
seus desenhos conhecidos das pessoas que se interessavam por artes plásticas.
Eram dois os quadros que aquele artista estava expondo. No outro, via-se uma
figura humana de perfil, cuja cabeça se esticava para trás, como que transformada
num pão de forma fatiado. Surrealismo da melhor qualidade. Eu não sabia que
Juarez Machado pintava; acreditava até ali que ele fizesse somente desenhos. Vi
toda a coletiva, almocei rapidamente e voltei para o trabalho. Passaram-se
alguns dias e me esqueci completamente da exposição, absorvido por minha
atividade intensa na diretoria do Banestado.
O sonho e a compra da tela
Foi
quando, numa daquelas noites, sonhei que estava visitando a exposição do BADEP e
que comprava o “quadro das vacas”. Quando chegava em casa, abria o pacote e via
que adquirira um quadro muito mal feito, com uns bezerros comendo capim, e essa
obra era assinada por Juarez Macedo, e não Machado. Gritei no sonho “Fui
enganado!” e acordei no meio da noite. Depois de algum tempo voltei a dormir.
Na manhã seguinte, uma sexta-feira, lembrei-me do sonho e senti vontade de
voltar ao BADEP para rever o quadro. Fui... e desejei comprá-lo. O preço era acessível, mais ou
menos parecido com os dos demais expositores. Eu não costumava fazer compras a prazo (e continuo nada comprando em prestações), porém perguntei à moça que atendia
aquele espaço, se o preço poderia ser parcelado. Ela me respondeu que os
parcelamentos deveriam ser tratados diretamente com o artista e me deu o número
do telefone do Juarez Machado no Rio de Janeiro.
FOTO 3 – “Senhor e Senhora Fulano de Tal”, Juarez Machado, 1977.
FOTO 3 – “Senhor e Senhora Fulano de Tal”, Juarez Machado, 1977.
Em
casa, à noite, fiz a ligação para o Rio. Atendeu o próprio Juarez. Eu contei a
ele que tinha visto sua tela “das vacas” na exposição, e que dias depois
ocorrera-me um sonho, que lhe narrei. Do outro lado da linha, eu ouvia o riso
do artista. Ele me disse: “O nome do quadro é Senhor e Senhora Fulano de Tal”. Então não eram “vacas” sobre a
cama, mas uma vaca e um boi. Indaguei-lhe se poderia me parcelar a compra, e sua
resposta foi: “É claro que sim, mas vá ao BADEP na manhã de segunda-feira,
porque naquela data os quadros já começarão a ser embalados para serem
devolvidos a Joinville”. E acrescentou que eu poderia ficar tranquilo quanto ao
pagamento, porque seu irmão chamava-se Edson e este costumava ir uma vez ao mês
a Curitiba, ocasião em que me procuraria para os acertos de contas.
Quando
na segunda-feira procurei pela moça que cuidava da exposição no BADEP, ela me
falou que eu poderia levar o quadro imediatamente porque o Juarez Machado já
tinha telefonado dizendo-lhe que poderia liberar a obra para mim. Fiquei
surpreso, pois acho que o Juarez nem sequer sabia qual o meu nome e agiu com
absoluta confiança. A moça anotou meu nome e endereço do meu empregador... e assim,
todo contente, eu levei o quadro para casa.
Conhecendo Edson Busch Machado
Muito
tempo depois, certa tarde, surgiu em meu gabinete de trabalho o irmão do
Juarez, um jovem simpático e dinâmico. Como costumava fazer sempre que vinha a
Curitiba, o Edson Machado percorrera os espaços culturais e galerias de arte
para ver o que estaria acontecendo culturalmente nesta capital. Quando, ainda
pela manhã, ele esteve na Fundação Cultural e viu a exposição de Chico Lopes, a
quem me referi no primeiro parágrafo deste artigo, ele me contou depois que notou
o nome de quem assinava a apresentação daquela mostra e disse consigo mesmo:
“Francisco Souto Neto é justamente o nome da pessoa que comprou o quadro do
Juarez, e com quem irei falar à tarde”. Ao encontrar-me, disse-me o Edson que
tinha gostado do meu texto a respeito dos desenhos de Chico Lopes e que ele,
Edson, iria realizar uma exposição em Joinville e gostaria que eu escrevesse
sobre sua arte. Contei ao Edson que, para a exposição do Chico, eu tinha
escrito pela primeira vez e muito instintivamente sobre arte, mas sem
conhecimento de técnicas. Edson Machado insistiu que traria os seus desenhos a
Curitiba para eu vê-los pessoalmente, e assim eu poderia simplesmente escrever
sobre a impressão que os mesmos provocariam em mim. Achei boa a ideia e fiz a
apresentação para o seu catálogo-convite. A mostra chamou-se Homenagem a Poetas, Jornalistas e Escritores.
Fui a Joinville para o vernissage e
mantive contato com os artistas e intelectuais daquela cidade. Na ocasião o
Edson pediu-me para apresenta-lo por carta a Chico Lopes, porque ele estava
disposto a realizar uma exposição do mesmo em Joinville. E assim começava o meu
envolvimento com a arte, que mudaria o curso da minha vida.
FOTO 4 – O catálogo para a individual de Edson Machado.
FOTO 5 – Texto de apresentação.
FOTO 6 – No vernissage, Edson Busch Machado e Francisco Souto Neto
FOTO 4 – O catálogo para a individual de Edson Machado.
FOTO 5 – Texto de apresentação.
FOTO 6 – No vernissage, Edson Busch Machado e Francisco Souto Neto
Na
verdade, arte não me era estranha. Eu ia frequentemente a exposições, lia a
coluna de Adalice Araújo, a mais conhecida e respeitada crítica de arte do
Paraná e conversava com amigos sobre esse tema. Por isso não me foi difícil
escrever para as exposições de Chico Lopes e Edson Machado. Logo outro artista
me pediu para escrever para o catálogo de sua exposição. Tomei o exemplo de
Adalice para escrever sempre com seriedade. Comecei a entender das incontáveis
formas e técnicas da arte.
FOTO
7 – Em fotografia de 1983, a mãe de Souto Neto, Dª Edith Barbosa Souto (1911-1997) com seu chihuahua Quincas Little
Poncho (1973-1989), e a tela de Juarez Machado integrada à parede da casa.
Como
Assessor da Diretoria do Banestado, e no princípio coadjuvado pelo colega Tadeu
Petrin, criei o Salão Banestado de Artistas Inéditos com a finalidade de
descobrir novos talentos, expô-los e projetá-los no cenário artístico. O
projeto abrangeu não apenas o Paraná, mas todos os Estados onde o Banco tinha agências,
mais o Distrito Federal. Pouco tempo depois veio o convite do jornalista Aroldo
Murá Haygert para que eu inaugurasse uma coluna de crítica às artes plásticas
em meia página do Jornal I&C (Diário Indústria & Comércio), que depois
passou a página inteira nas edições especiais do Jornal de Domingo. Nunca,
jamais, em qualquer circunstância, cobrei de quem quer que fosse, tanto nas
minhas colunas da imprensa, quanto nos textos que escrevi para catálogos. Criei
uma tradição de seriedade nos textos e isto fez com que minhas publicações
(jornais, revistas e rádio) se tornassem respeitadas. Até as minhas eventuais críticas
negativas eram feitas com o cuidado de não ferir ou magoar o artista, mas
sugerindo-lhe medidas e caminhos para evoluir em seu métier.
Adalice Araújo e tudo o que se seguiu
Para
completar a história do sonho que me levou a comprar um quadro do Juarez, certa
ocasião, durante uma visita que recebi de Adalice Araújo que veio à minha casa em
companhia de Heliana Grudzien, Adalice contou-me que estava presente quando
Juarez Machado pintava a tela “das vacas”
(Senhor e Senhora Fulano de Tal), e que esta foi a sua primeira obra em
óleo sobre tela.
É evidente que Juarez não tinha, nem de longe, a técnica absolutamente magnífica que hoje domina. A propósito, desde sempre percebi a existência bem óbvia de “arrependimentos” naquela pintura. “Arrependimento” é o nome tecnicamente dado às pinturas que vinham sendo executadas e de repente o artista mudou de ideia, ou alterou uma parte da pintura, ou às vezes até mudou inteiramente o tema. Alguns traços de pintura anterior a “Senhor e Senhora Fulano de Tal” podem ser vistos com facilidade na tela, não apenas quando olhada contra a luz. Entretanto, neste caso específico, tal detalhe torna o trabalho ainda mais interessante e enriquece a história dessa pintura.
FOTO 8 - Adalice Araújo (1931-2012), visitando Francisco Souto Neto em 2006, este segurando seu chihuahua Paco Ramirez (2003-2015), fala sobre a tela que viu Juarez Machado pintar.
É evidente que Juarez não tinha, nem de longe, a técnica absolutamente magnífica que hoje domina. A propósito, desde sempre percebi a existência bem óbvia de “arrependimentos” naquela pintura. “Arrependimento” é o nome tecnicamente dado às pinturas que vinham sendo executadas e de repente o artista mudou de ideia, ou alterou uma parte da pintura, ou às vezes até mudou inteiramente o tema. Alguns traços de pintura anterior a “Senhor e Senhora Fulano de Tal” podem ser vistos com facilidade na tela, não apenas quando olhada contra a luz. Entretanto, neste caso específico, tal detalhe torna o trabalho ainda mais interessante e enriquece a história dessa pintura.
Tudo
o que se passou após aquele sonho faz parte da guinada da minha vida que me
trouxe a este momento. Se aquele sonho não tivesse me ocorrido, eu não teria
comprado aquela tela, não conheceria o Edson, não teria me tornado um crítico
de arte, não teria me envolvido profundamente com as artes plásticas e nem
estaria aqui contando esta história. A minha vida teria – que incógnita! –
tomado outro curso.
...eu
poderia até nem mesmo estar aqui.
Sim,
há sonhos que podem mudar o curso de uma vida. A minha, sem dúvida, foi para
melhor... graças a Morfeu, o deus grego do sono e dos sonhos.
-o-
OBSERVAÇÃO:
Os textos para as apresentações das individuais tanto de
Chico Lopes quanto de Edson Busch Machado, poderão ser lidos no seguinte link:
Detalhes da visita de Adalice Araújo e Heliana Grudzien a
Francisco Souto Neto, e fotografias da ocasião, poderão ser vistos no seguinte
link:
http://viagenseopinioes.blogspot.com.br/2011/09/francisco-souto-neto-cairo-cidade.html
Em 2017 o jornalista Aroldo Murá incluiu meus traços biográficos no 9º volume da coleção VOZES DO PARANÁ - Retratos de Paranaenses, no qual, além de relatar detalhes da minha vida desde a infância, fez referências ao sonho (objeto deste artigo no blog) e mencionou o episódio com a exposição de Chico Lopes, no seguinte link:
https://soutoneto.blogspot.com/2020/04/vozes-do-parana-retratos-de-paranaenses.html
Em 2017 o jornalista Aroldo Murá incluiu meus traços biográficos no 9º volume da coleção VOZES DO PARANÁ - Retratos de Paranaenses, no qual, além de relatar detalhes da minha vida desde a infância, fez referências ao sonho (objeto deste artigo no blog) e mencionou o episódio com a exposição de Chico Lopes, no seguinte link:
https://soutoneto.blogspot.com/2020/04/vozes-do-parana-retratos-de-paranaenses.html
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Incrível a história de sua trajetória Sr Francisco! Impactada é a palavra que melhor se adéqua saber como o rumo das coisas que nos fazem ser quem somos!
ResponderExcluirPrezada Carol, agradeço-lhe por ter lido meu artigo e por manifestar-se aqui no meu blog. Obrigado por sua gentileza. Abraços extensivos a seus familiares.
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