PORTAL IZA ZILLI
Iza Zilli
Comendador FRANCISCO SOUTO NETO
MEU ENCONTRO COM OS MORTOS EM ROMA E
PALERMO
Francisco Souto Neto
Catacumbas são cemitérios romanos do século I ao IV, feitos em galerias
subterrâneas, às vezes utilizados pelos cristãos – no remoto passado – para
reuniões secretas ou cultos. Só na cidade de Roma existem cerca de 40
catacumbas, algumas gigantescas e às vezes interligadas. Além de Roma, há outras
também em Nápoles, Sardenha e Sicília. Eu já tive a oportunidade de conhecer
algumas delas.
Em
pé, os mortos de Palermo
A
Sicília é a ilha “chutada” pela bota itálica, onde se localiza o Etna – o
vulcão mais ativo do continente europeu – cuja capital é Palermo. No ano de
2001 fiz um cruzeiro de sete dias pelo Mar Mediterrâneo a bordo do Costa
Riviera, e um dos portos visitados foi justamente Palermo. O sul da Itália não
é uma região muito segura para turistas, frequentemente ameaçados por batedores
de carteira e “trombadinhas”, de modo que foi preferível aderir a uma das
diversas excursões organizadas pelo próprio navio, dedicando a tarde a conhecer
a Catacumba dos Capuchinhos. Ao tomar o ônibus que esperava pelos passageiros
no cais ao lado do navio, a guia apresentou-se e a todos advertiu: "Neste
passeio veremos principalmente cadáveres”.
Naquela
catacumba estão 8000 mortos, uns poucos deitados, maioria em pé, pendurados ou
encostados nas paredes e trajando roupas de época. Os cadáveres mais velhos são
de capuchinhos e nobres da Sicília. O mais antigo deles, em bom estado de
preservação, é do ano 900, portanto, com 1100 anos! Os mais recentes são do
início do século XX. Alguns esqueletos, às vezes ainda recobertos de
débil camada de pele, parecem gritar, outros sorrir. O cadáver adulto mais bem
conservado é o do siciliano Antonio Prestigiacomo morto em 1846.
É proibido fotografar dentro das catacumbas. Por isso, as reproduções abaixo são de cartões postais que comprei na portaria daquelas necrópoles.
É proibido fotografar dentro das catacumbas. Por isso, as reproduções abaixo são de cartões postais que comprei na portaria daquelas necrópoles.
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1 – Corredor dos profissionais. Os melhores do seu tempo: o pedreiro, o entalhador,
o banqueiro, o dentista, e assim por diante. Costumam ser visitados pelos seus
descendentes.
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3 – Três mortos em séculos passados.
Mas
existe uma menina falecida em 1920, conhecida como La Bambina, que está
absolutamente intacta, deitada no interior do seu caixão. Eu me lembrava de ter
visto o rosto daquela criança, há alguns anos, num programa de televisão que se
chamava “Acredite se Quiser”, apresentado pelo ator Jack Palance. La
Bambina continua sendo a principal atração da catacumba. Fiquei a
contemplá-la por muito tempo, de certo modo fascinado, porque ela parece dormir
envolta pelas suas cobertas, apenas o rosto despontando sereno e inocente. Um
laço de fita amarela enfeita os cabelos da garotinha.
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4 – "La Bambina" ("A menina") que se chamava Rosalia
Lombardo. Morta em 1920 e embalsamada. Parece dormir.
A
mumificação de La Bambina foi feita por um médico que morreu sem
revelar os métodos que adotou. A irmã gêmea da menina veio visitá-la até ao
começo dos anos 90 do século passado, quando faleceu. Desde então, La
Bambina não tem mais recebido visitas de familiares.
No
Dia de Finados, em Palermo, os pais costumam levar os filhos às catacumbas,
para que visitem seus antepassados. Segundo o costume local, a energia elétrica
é desligada naquele dia, e os visitantes valem-se de velas. Não há, entretanto,
absolutamente nenhum terror, nem a mínima intenção de assustar a quem quer que
seja. Tudo é feito com a maior naturalidade. Aquilo é para os sicilianos um
simples fato cultural, uma tradição, um ato de respeito.
Catacumba
dos Capuchinhos em Roma
Noutra
ocasião eu me encontrava em Roma, quando visitei outra catacumba, também de
capuchinhos, bem mais em forma de cripta do que de uma catacumba propriamente
dita, anexa à Igreja Santa Maria della Concezione, em plena
Via Veneto, uma rua elegante e movimentada conhecida desde os tempos
alegres della dolce vita de Fellini... Localiza-se no primeiro
quarteirão da referida Via Veneto, a poucos metros da Piazza Barberini, em cuja
esquina está a famosa Fonte das Abelhas, da autoria de Bernini.
A
igreja foi construída em 1624. Dentro dela há uma sepultura sem nome, próxima
ao altar, ao rés do chão, sobre a qual todos os visitantes pisam ao circular
pelo templo. Ali está enterrado o cardeal Antonio Barberini, da riquíssima
família romana e irmão do Papa Urbano VIII. Por ser capuchinho com voto de
pobreza, o cardeal Barberini ordenou que ao morrer, num ato de humildade, fosse
enterrado em cova cuja lápide, para ser pisada por todos, não contivesse o seu
nome, mas apenas o triste epitáfio em latim: “Hic jacet pulvis, cinis et
nihil” (“Aqui jazem pó, cinzas, e nada”).
Sob
a igreja, mas com entrada por fora, pela Via Veneto, está uma catacumba
diferente, inteiramente decorada com os ossos de 6000 irmãos capuchinhos. O
curioso é que tais ossos, desmembrados dos seus donos, ornamentam as paredes
formando verdadeiros florais rococós. Do teto pendem lustres compostos com
ossos. Cornijas, molduras, tudo, absolutamente tudo, é feito com ossos humanos
dispostos como peças decorativas. Ligados por arames invisíveis, formam coroas
de espinhos, crucifixos e corações sacros. Um dos poucos esqueletos
completos é o de uma princesa Barberini que morreu ainda criança. Alguns
esqueletos adultos também foram conservados inteiros, vestidos com trajes
eclesiásticos, mas estão sempre cercados pelos “adereços” que formam, nas
paredes e tetos, “elegantes” traçados.
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5 – Corredor decorado com ossos humanos. À direita, as diversas capelas.
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6 – Crânios de capuchinhos.
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7 – Capela com paredes decoradas por caveiras e ornamentadas com ossos
menores... e teto suntuosamente macabro.
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8 – Teto de uma das capelas.
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9 – O teto desta capela forma "flores" com ossos ao redor de um
esqueleto.
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10 – Detalhe da fotografia anterior. Teto de uma das capelas. O esqueleto central
simboliza a Morte, e sua foice é toda formada com ossos humanos.
Por
toda parte, as órbitas oculares vazias dos crânios parecem seguir os movimentos
dos visitantes. Apesar disso, a catacumba não chega a ser lúgubre, talvez
porque os ossos estejam dispostos de modo a “enfeitar” os diversos cômodos, ou
capelas, simulando uma impressão de macabra “beleza”. Ainda assim, ao sair do
recinto, vi uma inscrição sobre a porta, que resume a triste realidade dos
restos mortais ali expostos: “Nós fomos
o que você é”.
É
preciso que se compreenda que neste contexto as catacumbas, ao preservarem
ossos dispersos ou cadáveres mumificados e vestidos, impõem, principalmente, o
respeito aos mortos, tratados sempre com reverência, fazendo-nos refletir sobre
a efemeridade da vida e a nossa própria finitude.
-o-
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