PORTAL IZA ZILLI
Iza Zilli
Comendador Francisco
Souto Neto
Cemitérios de
La Chacarita e Recoleta na história do absurdo sequestro do corpo embalsamado
de Evita Perón
Francisco Souto Neto
Quando estive pela primeira vez em
Buenos Aires, no distante ano de 1967 (há praticamente meio século), um dos
passeios mais recomendados era aos cemitérios de La Chacarita e Recoleta. Durante
todas essas décadas, eu voltei muitas vezes à capital argentina. Vi
desaparecerem os seus cinemas grandes e elegantes como palácios, em cujos
saguões os pés afundavam-se nos tapetes, substituídos, infelizmente, por
templos evangélicos. Ainda bem que a preciosa arquitetura da cidade tem sido
preservada, com suas portas magníficas, cuja imponência ainda surpreende aos
novos turistas. Uma região antes decadente às margens do Rio da Prata foi revitalizada
com extremo bom-gosto: Puerto Madero, que se tornou um ponto de encontro, com
belas lojas e polo gastronômico. Mas afortunadamente os dois mais importantes
cemitérios da capital portenha continuam sendo atrações turísticas.
Em La Chacarita, Carlos Gardel e Perón
Lembro-me nitidamente da minha
primeira visita a La Chacarita em 1967. Impressionaram-me as largas alamedas do
cemitério, por onde trafegavam carros como se ali fosse uma cidade, cujos
prédios seriam os riquíssimos túmulos quase sempre pegados um ao outro. Ao
aproximar-me da porta de ferro trabalhado e vazado daqueles mausoléus, notei
que as urnas funerárias, ou “caixões de defuntos”, estavam ali expostos em seus
nichos. Isso mesmo, descobri que em La Chacarita – depois confirmei também no
Cemitério de la Recoleta – os caixões não são emparedados. Obviamente essas
urnas de madeiras ricamente trabalhadas têm em seu interior um isolante
metálico, dentro do qual jazem os restos mortais.
FOTO 1 – O cantor Carlos Gardel.
FOTO 2 – Em 1967 Francisco Souto Neto
em La Chacarita, com os túmulos de um dos quarteirões às suas costas.
FOTO 3 – Em 1967, La Chacarita com
seu aspecto de uma cidade, em cujas ruas trafegam automóveis. Mas os edifícios
são mausoléus, e as casas, túmulos. Foto de Francisco Souto Neto.
FOTO 4 – Em 1967, um féretro em La
Chacarita. O carro fúnebre é uma limusine adaptada. Foto de Francisco Souto
Neto.
Uma das atrações principais de La
Chacarita sempre tem sido o túmulo do cantor Carlos Gardel (1890 – 1935), que
foge ao padrão comum, pois é uma simples tumba de cimento pintado de branco.
Mas há dezenas de placas de bronze nas paredes, oferecidas por fãs do cantor, e
muitas flores ao redor de sua estátua em tamanho natural. Entre os dedos
indicador e médio da mão direita é frequentemente colocado um cigarro aceso.
Com essa mesma mão, ele segura uma correia de bronze que tem na ponta uma
medalha cheia de detalhes, cujo significado se desconhece.
Outro túmulo que atrai turistas é o
de Juan Domingo Perón (1895-1974), presidente do país. Nesse túmulo há uma
placa que lembra sua esposa, a trágica Evita Perón, porém ela não está
sepultada ali. Foi desse túmulo que o seu corpo embalsamado foi sequestrado e
desapareceu por décadas, até ser localizado na Itália. Hoje sua sepultura é no
túmulo da Família Duarte, no Cemitério Recoleta.
FOTO 5 – Em 1977, novamente nas ruas do Cemitério de La Chacarita.
FOTO 6 – Em 1977, Dª Edith Barbosa
Souto, mãe de Souto Neto, conversando com um dos zeladores do Cemitério de La
Chacarita, que todas as manhãs abria os túmulos do quarteirão pelo qual era
responsável, para tirar o pó dos caixões funerários e polir os metais.
FOTO 7 – Em 1977, Francisco Souto
Neto conversando com o mesmo zelador que tirava o pó dos caixões mortuários,
que em La Chacarita não ficam emparedados.
FOTO 8 – Em 1977, Dª Edith Barbosa Souto visita o túmulo de Carlos Gardel em La Chacarita.
No terceiro parágrafo abaixo, farei o
relato da escabrosa história referente ao corpo de Eva Perón. Antes de encerrar
capítulo de La Chacarita, devo observar que o cadáver também embalsamado do
presidente Perón está sem as mãos. Em 1987 o túmulo foi arrombado, e algum
louco serrou as mãos do cadáver para, provavelmente, guardá-las escondidas em
sua casa. Elas nunca foram encontradas.
Quando estive no túmulo de Perón em
1977 na companhia de minha mãe Dª Edith Barbosa Souto, época da ditadura
militar na Argentina sob o governo do detestável general Jorge Rafael Videla, o
povo estava oprimido pela tirania do regime. Nós notamos uma senhora com um
buquê de florinhas silvestres que, virando a esquina e vendo que estávamos
parados em frente à sepultura, olhou-nos parecendo assustada. Ficou meio
titubeante... Girou sobre os pés, começou a voltar, mas parou, afastou-se mais
alguns passos bem devagar... e então, dando meia volta, dirigiu-se decidida ao
lugar onde estávamos, soltou seu buquê na porta do mausoléu e voltou em passos
rápidos, desaparecendo por onde surgira. Foi uma demonstração da insegurança
que grassava no país.
Em 1997, quando lá estive com minha
irmã Ivone Souto da Rosa, os argentinos estavam mais descontraídos com o país
redemocratizado sob a presidência de Carlos Menem. Hoje o túmulo é protegido
por câmeras de televisão.
FOTO 9 – Em 1997, Ivone Souto da Rosa
no túmulo de Carlos Gardel.
FOTO 10 – Em 1997, quase sempre
alguém oferece cigarros a Carlos Gardel.
FOTO 11 – Em 1997, às vezes há dois
ou até três cigarros de uma só vez entre os dedos de Carlos Gardel.
FOTO 12 – Em 1997, Francisco Souto
Neto pela 5ª vez nas ruas de La Chacarita.
FOTO 13 – Em 1997, como em 1967 e
como sempre, Francisco Souto Neto olhando pela porta de um túmulo, fotografa os caixões funerários e um corrimão brilhante que leva a vários andares de
subsolos, todos com os esquifes expostos e completamente limpos.
FOTO 14 – Em 1997, Francisco Souto
Neto com túmulos de La Chacarita ao fundo.
FOTO 15 – Em 1997, Francisco Souto
Neto e sua irmã Ivone Souto da Rosa em frente ao túmulo do presidente Juan Domingo Perón.
FOTO 16 – As duas placas superiores
aludem a Eva Perón, e a placa inferior refere-se a Juan Domingo Perón.
FOTO 17 – O presidente Juan Domingo
Perón com Evita Perón na década de 40.
No Recoleta, Eva Perón
Tal como ocorre em La Chacarita, este
outro cemitério é notável pela quantidade de túmulos maravilhosos, verdadeiras
obras de arte, com estátuas em bronze e mármore que mereceriam estar
preservadas em museus. Mas felizmente o povo argentino é muito culto e educado,
e essas obras de arte têm sido respeitadas. Se no La Chacarita os caixões
fúnebres estão expostos quase sempre muito limpos, em Recoleta há muitos que
são exibidos cobertos de pó e teias de aranha.
FOTO 18 – Em 1982 Rubens Faria Gonçalves acompanhou-me pela 2ª vez a Buenos Aires. Na foto acima, no centro da cidade.
FOTO 19 – Francisco Souto Neto na Feira de San Telmo.
FOTO 20 – Túmulos de Recoleta.
FOTO 21 – Caixões mortuários empoeirados.
FOTO 22 – Caixões lado a lado... e um gato preguiçoso (foto da internet).
FOTO 23 – Caixões em níveis mais
baixos do solo, empoeirados (foto da internet).
FOTO 24 – Francisco Souto Neto faz de
conta estar assustado com os dois guardas do túmulo (este, um dos interessantes
e belos mausoléus de Recoleta).
FOTO 25 – Este é o túmulo da família de Eva Duarte (Duarte de Perón após o casamento). Evita fora originalmente enterrada no túmulo da família Perón em La Chacarita, e dali os militares comandados pelo presidente general Aramburu sequestraram seu corpo no esquife e "contrabandearam-no" em segredo para Milão, na Itália, onde Eva foi sepultada sob o falso nome de Maria Maggi de Magistris. Em 1970, localizado em Milão, o corpo ficou até 1974 em Madrid (onde Perón estava residindo) e de lá foi trazido de volta à Argentina em 1975. Está atualmente no túmulo acima, em Recoleta. Essa história vai relatada após a FOTO 35.
Aqui, entretanto, vou tratar do drama
ocorrido após a morte trágica de Eva Perón.
FOTO 26 – Eva Duarte (Eva Perón após
o casamento) muito jovem, quando atriz.
FOTO 27 – Eva Perón em 1947,
primeira-dama da Argentina, com vestido Dior.
O túmulo mais famoso do cemitério é o
de Maria Eva Duarte de Perón (1919-1952), conhecida como Evita Perón, que atrai
multidões de turistas e curiosos. Ela foi atriz e política. Tornou-se
primeira-dama da Argentina quando o general Perón se elegeu presidente.
O carisma de Evita foi inigualável na
História do país. Chamada “madre de los descamisados” (mãe dos pobres), ao
mesmo tempo impressionava não apenas ao mundo, mas até mesmo aos próprios
“descamisados”, que se orgulhavam de vê-la brilhar com seus vestidos finíssimos
e casacos de peles. Dedicou-se, verdadeiramente, aos pobres e necessitados, e
desde 1958 trabalhava cerca de 18 horas por dia, quase sem se alimentar. Sua
jornada de trabalho se estendia das 7 da manhã até aproximadamente 2 ou 3 da
madrugada. Em 1951 ela lançou o livro “La Razón de mi Vida”, Ediciones Peuser.
No ano de 1967, em Buenos Aires, estive num leilão onde, dentre outros livros,
o referido estava sendo leiloado. Havia um monte de exemplares, todos
autografados por Eva Perón e com certificado de autenticidade. Os lances eram
baixos. Arrematei dois deles.
FOTO 28 – Capa do livro “La Razón de mi Vida”,
de Eva Perón.
FOTO 29 – Autógrafo de Eva Perón com
tinta azul.
No auge da beleza e poder, viu-se
vítima de leucemia (alguns historiadores mencionam câncer uterino). Seu
definhar foi acompanhado com desespero pelo povo. Morreu com apenas 32 anos, a
26 de julho de 1952. Começaria ali, após a morte, uma nova, dramática e bizarra
história de Evita Perón.
Embalsamamento, sequestro e recuperação
FOTO 30 – Eva Perón no auge de sua
beleza no final da década de 40.
FOTO 31 – Eva Perón no balcão da Casa
Rosada falando às mulheres da Plaza de Mayo.
O corpo de Eva Perón foi
embalsamado por Dr. Pedro Ara "para durar mil anos" com sua beleza perenizada. Em
meio a forte comoção popular, o velório durou 17 dias. O presidente Perón
mandou construir no centro de Buenos Aires um enorme monumento para servir de
memorial e sepultura de sua esposa. Mas as obras atrasaram-se, enquanto o corpo
permanecia durante meses e anos perfeitamente preservado, no laboratório do Dr.
Ara, no qual nem a mãe e as irmãs da finada podiam entrar. Semanalmente elas
levavam flores a Evita, mas depositavam-nas na porta fechada, e ali faziam
orações.
Em 20 de setembro de 1955 Perón, que
estava na presidência há nove anos, foi deposto por um golpe militar e
exilou-se na Espanha. O corpo de Evita, à mercê dos novos dirigentes da
Argentina, estava desnudo, apenas coberto por um lençol, e os aliados à
ditadura ameaçavam queimá-lo por ver, naqueles restos mortais, um poder
político que deveria desaparecer.
Uma amiga do Dr. Pedro Ara, a senhora
Thana Palud de Goicoechea, propôs-se a vestir o cadáver com uma roupa bem
simples, parecida com a que se vê em esculturas e quadros religiosos, e assim
foi feito. No dia 24 de novembro de 1955
os militares trancaram o corpo embalsamado de Eva Perón num esquife e nunca se
soube do seu destino por muitos e muitos anos. Mãe e irmãs de Eva,
transtornadas e pesarosas, mudaram-se para o Chile, temendo violências por
parte da ditadura instaurada no país.
FOTO 32 – Capa do livro “El Caso Eva
Perón”, por Dr. Pedro Ara, CVS Ediciones 1974.
FOTO 33 – Data da compra do livro acima
por Francisco Souto Neto, 15.1.1982, num sebo de Buenos Aires.
FOTO 34 – O corpo de Eva Perón sendo
preparado pelo Dr. Pedro Ara.
FOTO 35 – Exposição do corpo de Eva Perón embalsamado "por mil anos".
A partir daí, a história é um pouco
nebulosa. Aparentemente para não provocar uma convulsão popular, porque Eva
Perón era considerada santa pela população mais carente, o corpo foi primeiro
sepultado no túmulo da família de Perón em La Chacarita. Logo depois, os
militares mandaram violar o túmulo e sequestrar o esquife de Eva Perón,
começando aí uma das mais insólitas e absurdas peregrinações de um cadáver que
se tenha registro na História. O coronel Carlos Eugênio de Moori Koenig foi
incumbido pelo presidente general Aramburu de esconder o seu corpo em algum
lugar, e ele levou-o em segredo para a sua casa. Comenta-se que ele se apaixonou
pelo cadáver. Suspeitando disso, o presidente Aramburu ordenou que outro
coronel, Héctor Cabanillas, se responsabilizasse pelo corpo de Evita, enquanto
pedia ajuda ao Núncio Apostólico da Argentina em Roma para sepultá-la
secretamente na Itália. Amparado com a concordância do Papa Pio XII, o corpo
viajou para Milão sob o falso nome de Maria Maggi de Magistris, como se fosse
uma imigrante italiana falecida na Argentina. Foi enterrada num convento em
Milão. Feito isso, o presidente Aramburu depositou um documento lacrado num
cartório de Buenos Aires, determinando que após a sua morte – dele, Aramburu –
o envelope deveria ser entregue ao parente mais próximo de Perón.
Exilado e desconhecendo o paradeiro
do corpo de Evita, Perón conheceu uma jovem, Maria Estela Martínez, com quem se
casou. Ela passou a ser conhecida com Isabelita Perón.
No dia 1º de junho de 1970 morreu o
general Aramburu aos 67 anos. O que não imaginava Aramburu, é que ao morrer,
seu inimigo Perón ainda estaria vivo. O envelope do cartório, sem que se
soubesse do seu conteúdo, que deveria ser entregue “ao parente mais próximo de
Perón”, foi encaminhado ao próprio Perón que continuava vivo no exílio, na
companhia de Isabelita, residindo em Madrid na “Quinta 17 de Octubre”. Então Perón
soube onde se encontrava escondido o corpo de Evita.
Numa operação muito bem planejada,
mandou exumar o caixão de Evita em Milão e destiná-lo a sua residência na
capital espanhola. Não se sabe exatamente como o esquife conseguiu atravessar
todo o território francês e ser entregue numa residência, e não num cemitério.
O fato é que no dia 4 de setembro de 1971 Perón convidou à sua quinta os
embaixadores acreditados em Madrid, para declarações muito importantes. Quando
estes lá chegaram, encontraram Perón e Isabelita de posse do corpo de Eva...
e o mundo soube que o antigo presidente recuperara os restos mortais da esposa.
Durante alguns meses Perón e
Isabelita conviveram com o corpo de Evita, que não estava completo: faltava-lhe
um dedo de uma das mãos e também um
pequeno pedaço da orelha esquerda, havia um pequeno afundamento no nariz, e
vestígios de um machucado no joelho. Os jornais da época atribuíram a falta do
dedo aos militares de 1955 que teriam, desse modo brutal, procurado confirmar
se aquele era mesmo o corpo de Eva Perón e não uma estátua de cera.
Em 1973 Perón e Isabelita puderam voltar
à Argentina, mas o corpo de Eva Perón continuou na residência da Quinta 17 de
Octubre em Madrid. Em seguida, ele foi reeleito presidente, com Isabelita na
chapa como vice. Um ano depois Perón morreu, e Isabelita assumiu a presidência
da Argentina, quando mandou buscar na Espanha o corpo de Evita, que
ficou então na Quinta de Olivos, que é a residência oficial da presidência da
Argentina. Em 1976 Isabelita foi derrubada por um novo golpe militar e foi
viver na Espanha. Os militares entregaram o corpo às irmãs de Evita, por elas
sepultada na Recoleta. Finalmente Evita Perón descansou, inumada onde até
hoje se encontra, no túmulo de sua família sempre coberto de flores.
FOTO 36 – Detalhe do lado direito do
túmulo da Família Duarte, onde está sepultado o corpo de Eva Perón
"embalsamado por mil anos", e várias placas de bronze, todas em sua
homenagem.
FOTO 37 – Marion Souto da Rosa Lemes
e Felipe Bill em frente ao túmulo da Família Duarte, em Recoleta, julho de
2016, 64 anos após a morte de Eva Perón. As décadas e as gerações se sucedem, mas o fascínio ou a curiosidade pela
“madre de los descamisados” permanece.
-o-
Depois dessa incrível, estranha e dramática odisseia, finalmente jaz o corpo embalsamado de Evita, desde outubro de 1976 no cemitério da Recoleta, Buenos Aires, sob uma operação segura de militares argentinos para a cripta de sua família profunda e protegida tal como um abrigo nuclear com aproximadamente 5 metros de profundidade.
ResponderExcluir