PORTAL IZA ZILLI
Iza Zilli
Comendador Francisco
Souto Neto
Os mistérios
do Monte Saint-Michel
Francisco Souto Neto
FOTO 1 - Le Mont Saint-Michel
em momento de maré cheia. Fotografia da internet (La France vue du ciel - Foto Sywain Augier)
Por
vários motivos, o Mont Saint-Michel, uma ilha situada na Normandia, litoral
norte da França, é considerado um dos locais mais misteriosos e fascinantes do
mundo. No passado visitei aquele lugar na companhia de um amigo, o
psicólogo Rubens Faria Gonçalves. Ali hospedados no Hotel du Guesclin durante alguns dias, pudemos
conhecer a antiguidade da cidadela medieval e observar as fenomenais marés – as
maiores da Europa – que ocorrem naquela região.
Marés gigantescas
FOTO 2 - Souto
Neto com Le Mont Saint-Michel ao fundo.
A
Natureza privilegiou Le Mont Saint-Michel com ciclópicas marés. A diferença
entre a altura da montante e da vazante chega aos 15 metros. Na vazante, o
mar afasta-se por cerca de 10 quilômetros, deixando expostas as perigosas
areias movediças que já mataram desavisados.
Ao retornar, o mar vem com a velocidade de um cavalo a galope. Por tais
motivos, é proibido nadar na maré alta e andar pelas areias na baixa. Em toda
parte, placas advertem aos turistas dos perigos do Monte.
FOTO 3 - Esta pequena
capela fica atrás do Mont Saint-Michel. Na maré vazante, o mar está 10
quilômetros afastado da base do monte.
FOTO 4 - Rubens Gonçalves
apontando para a chegada do mar, na maré montante. Em poucos minutos, as águas
atingem a encosta do Monte, à direita.
Durante
nossos dias de estada, pudemos admirar por várias vezes esses fenômenos. No
primeiro dia, por volta das 15 horas, quando a vazante atingira seu ponto mais baixo,
fomos olhar de perto. O mar recuou com tanta intensidade que desapareceu para
além da linha do horizonte. Vimos um grupo de turistas tirando os sapatos para
iniciar um passeio guiado pelas areias. O guia era um expert do
próprio Monte que sabia como identificar e, principalmente, evitar as áreas de
areias movediças.
FOTO 5 - A placa branca
adverte aos motoristas qual a hora em que a maré montante encobrirá totalmente
o estacionamento. A placa maior, com fundo preto, avisa que "baignade
interdite" (banho é proibido) e existem "sables mouvants"
(areias movediças).
Deste modo, pode-se ir através das areias expostas, também porque o retorno das
águas do mar tem hora marcada, diariamente divulgada por duas
vezes através de grandes placas fixadas em pontos estratégicos da ilha.
Resolvemos pisar um pouco nas areias e impressionei-me por serem elas
extremamente escorregadias.
A saga da foca
Pouco
depois das 17 horas fomos observar o retorno do mar e ficamos fascinados porque
as águas de um rio que passa ao lado do Mont Saint-Michel começaram, de
repente, a correr ao contrário. O mar surgiu no horizonte e veio avançando
rapidamente em direção à ilha, provocando ruidosos turbilhões. Nós, e os demais
turistas que ali nos encontrávamos, corríamos para todos os lados, gritando
alegremente, mostrando uns aos outros os efeitos do fascinante fenômeno. O mar
avançava quase que em cascatas sobre o continente, formando rodamoinhos. Um
grande declive nas areias dava-nos a certeza de que teríamos tempo hábil para
fugirmos das águas, caso fosse necessário.
Vimos
então um animal trazido pelo mar, que emergia e desaparecia no turbilhão.
Quando o bicho saiu das águas e subiu a pequena ladeira de areia, percebemos
que se tratava de uma foca que, ao terminar a subida, estirou-se e ficou
preguiçosamente a tomar sol, alheia à barulhenta e admirada plateia humana.
Todos nós não resistimos a um pequeno afago nas costas do animal, que parecia
habituado a receber tais carícias. Um dos presentes, um entusiasmado turista,
dizendo que seria mais seguro que a foca voltasse ao mar, levou as mãos sob o
mamífero, rolando-o para as águas. Porém a foca não tinha a mesma opinião
porque, sob uma gargalhada generalizada, saiu do mar buliçoso, galgando a
ladeira por onde fora empurrada e, outra vez, estirou-se na areia seca.
FOTO 6 - Rubens Gonçalves
filmando a foca trazida pela maré montante.
Mas tudo foi muito rápido, porque a maré expulsou-nos para as rochas, donde
vimos a foca, agora sem areias secas onde tomar banhos de sol, nadando para
longe.
Em
poucos minutos toda a região onde se avistavam somente areias – as temíveis
areias movediças – estava tomada pelo mar, agora muito sereno, que contornou
toda a ilha de Le Mont Saint-Michel.
Algumas vezes atravessamos La Digue a pé e fomos aos campos nas terras
continentais, a grande distância, para observarmos o Monte de longe e para
vermos os famosos carneiros das redondezas.
FOTO 7 - Souto Neto atrás
dos carneiros, no continente, com a ilha do Mont Saint-Michel ao fundo.
A cidadela medieval
A
história do Monte é a seguinte: no final do século VII, Saint Michel (no
Brasil, São Miguel) teria aparecido em sonho ao abade Aubert, pedindo-lhe que
construísse uma capela no alto do Mont Tombe (Monte Túmulo), pois era assim que
então se chamava. O abade não tomou qualquer providência porque as violentas
marés e as traiçoeiras areias movediças da vazante tornavam o caminho
extremamente perigoso. Então Saint Michel apareceu-lhe num segundo sonho,
e com um dedo apertou a cabeça do assustado religioso, para que este se
lembrasse do seu pedido.
FOTO 8 - Crânio do abade Aubert, tido como relíquia
numa das igrejas do Mont Saint-Michel (que estava fechada), mostra o lugar onde
o anjo São Miguel (San Michael) o teria apertado com o dedo. Desenho
"Caveira do abade Aubert" encontrado na internet.
Assim, o Mont Saint-Michel – como passou a ser chamado – começou como um
oratório no ano de 708. Em 1017 foi iniciada a construção da igreja e da
abadia. No começo do século XIII foi acrescentado o mosteiro que passou a ser
conhecido como “La Merveille” (“O Milagre”) e “A Maravilha do Ocidente”, um dos
mais gloriosos complexos arquitetônicos do planeta.
O
Monte tornou-se um dos mais importantes locais de peregrinação cristã na
Europa, só comparável a Roma e Santiago de Compostela. No final do século XIX a
ilha foi unida ao continente por uma passarela artificial conhecida como “La
Digue”, hoje usada por veículos que chegam até aos portões da cidadela.
FOTO 9 - Fotografia tirada
por Souto Neto do alto da abadia, mostra em primeiro plano a ilha, em
seguida La Digue, que faz a ligação com o continente, cheia de carros e
ônibus estacionados, o que é possível somente durante a maré vazante. Em último
plano, as pastagens das ovelhas. Muito ao longe, depois das pastagens, há uns
hotéis para quem deseja pagar diárias menos caras.
No seu interior, pelas ruelas, circulam somente pedestres. A cidadela medieval
que resistiu a várias invasões e guerras ocorridas através dos séculos e que chegou
intacta aos nossos dias, é encantadora e fascinante. Andar por suas ruas tortuosas,
algumas das quais com menos de um metro de largura, transporta-nos a um passado
remoto e fascinam pela extrema beleza.
A
abadia, no alto da ilha, é magnífica. Percorremos seus corredores, salões e
galerias. Alguns trechos são mantidos propositalmente com pouca iluminação, o
que facilita a sensação de recuo no tempo. Tudo é desmesuradamente grandioso.
Não sei em que Umberto Eco se inspirou para escrever “O Nome da
Rosa”, mas não será inesperado se a resposta estiver no Le Mont Saint-Michel. De
todo o complexo formado pela abadia e igreja, a maior surpresa é o átrio no
pináculo da construção, com delicada colunata dupla, tudo isto emoldurando o
grande quadrilátero que abriga um jardim suspenso cheio de florinhas e
pássaros.
FOTO 10 - Rubens Gonçalves
filmando o claustro e seu jardim, na parte mais alta da abadia.
Durante
o dia, hordas de turistas entopem as ruelas e é difícil andar por ali. A Grande
Rue, principal via do Monte, que sobe íngreme até à abadia, é cheia de lojas,
lanchonetes e restaurantes atulhados de gente. É enorme o número de turistas
viajando acompanhados dos seus cães de estimação.
FOTO 11 - Rubens Gonçalves
na Grande Rue, a principal do Monte, repleta de turistas.
À noite, como poucas pessoas hospedam-se na cidadela, as multidões desaparecem
e o silêncio desce imperioso. As ruelas medievais tornam-se quietas. Andávamos
então ouvindo o ressoar dos próprios passos, e as nossas vozes ecoavam pelos
becos vazios. Só alguns casais permaneciam namorando na obscuridade.
FOTO 12 - Souto Neto
subindo por este caminho entre duas lojas da Grande Rue. Por incrível que
pareça, esta escada é uma rua do Monte, que leva às entradas
de algumas casas.
FOTO 13 – Os frades da
Abadia, andando dentro desta roda (como ratos) faziam subir as mercadorias para
o alto do Monte.
FOTO 14 – Esta é uma das
duas gigantescas lareiras da imensa sala de refeições que aqueciam centenas de
peregrinos na Idade Média.
FOTO 15 – Francisco Souto
Neto em frente às antiquíssimas residências do Mont Saint-Michel com seus
telhados de ardósia.
Em
julho o sol se põe às 22 horas. No lusco-fusco, os passarinhos alvoroçam-se
para liquidar os farelos de comestíveis deixados no chão pelos turistas. Os
cães, de todos os tamanhos e cores, que durante o dia imperam na cidadela,
somem com os seus donos quando a noite cai. Surgem então os soberanos noturnos
do Mont Saint-Michael: os gatos. Inúmeros, entram nos latões de lixo revirando
tudo que podem, e andam em atitude de caça. Creio que procuram por ratos e
baratas, mas ainda bem que não vimos essas duas outras espécies.
Quando
deixamos o nosso hotel centenário situado no alto de uma das muralhas da
cidadela – o Hôtel Du Guesclin - teríamos como destino outras localidades do
interior da França, mas nem a expectativa de futuras descobertas encobria a
tristeza de termos que deixar o quase mágico Le Mont Saint-Michel, com suas
marés gigantescas e as admiráveis construções que, durante todo o tempo,
deram-nos a sensação de estarmos face a face com a Eternidade.
Abaixo, o link do YouTube com o resumo de um filme que fizemos no Mont Saint-Michel:
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