segunda-feira, 24 de agosto de 2020

A VIDA ESCANCARADA DE MEUS SIMPÁTICOS VIZINHOS, por Francisco Souto Neto no inverno de 2020.


O prédio vizinho, visto do meu quarto.

A VIDA ESCANCARADA DE MEUS SIMPÁTICOS VIZINHOS
por Francisco Souto Neto


Comendador Francisco Souto Neto 


Quem, como eu  – que se encontra em quarentena por causa da pandemia que assola o mundo –,  quando se sente enfadado de tanto ler, de espanar o pó da casa, de assistir a muitos programas e noticiários da televisão, de ouvir música, de ficar no teclado do computador, de se atrever nas teclas do piano e de assistir a centenas de filmes, o que resta é olhar o mundo exterior pela janela. Observar, muito abaixo, os carros, e na rua gente mascarada ou não, as atividades de pessoas dentro dos seus escritórios e apartamentos nos prédios ao redor, o movimento das nuvens, o voo dos pássaros e as alvoradas e crepúsculos.

Hoje quero referir-me a um casal que vive num prédio que fica aos fundos do meu, que avisto não apenas das duas janelas do meu quarto, mas também da minha área de serviço e do quarto de empregada. O apartamento duplex de cobertura situa-se à altura do meu andar; só a caixa d’água e a casa de máquinas do elevador ficam acima do meu ponto de vista.

Não sou indiscreto, porque esse casal – que apelidei Zaribu e Zaribua – mostra-se com naturalidade. Ambos, mas não sempre, me parecem meio tristes, sorumbáticos. Já há alguns meses, antes mesmo da pandemia, notei primeiro o macho. Quero dizer, não tenho muita certeza, mas creio que era o macho, e ele me pareceu um urubu muito solitário.

Mas na sequência, foi o meu amigo Rubens quem percebeu que ele não era solitário, pois passou a fazer-se acompanhar de quem seria a fêmea, ou vice-versa, pois ninguém sabe distinguir o sexo dos urubus. Ou, provavelmente, um expert saiba distinguir os gêneros, porém isto não é o que importa. O que vale ressaltar é que eu – quem diria?! – passei a observar os urubus, meus simpáticos vizinhos.

Se a foto que está encimando este artigo for olhada com atenção, será possível notar que os urubus estão sobre a caixa d’água do prédio. Repito-a por esse motivo.

 No princípio parecia um urubu solitário.

Na verdade, tratava-se de um casal. Aqui, num dos dias mais gélidos do ano, arrepiados de frio.

Olhando de perto, com auxílio de meu zoom, até que um urubu não é tão feio. Meu amigo Rubens, vendo esta foto, achou Zaribu parecido com aqueles juízes britânicos bem circunspectos que usam peruca branca, longa e encaracolada.

Os dois estão sempre juntos. Pela manhã ficam nos vértices do prédio, até nos locais mais altos, porém maior parte do tempo estão no parapeito do terraço da cobertura.

Em dia muito frio, perto de 0°, com Ecoville enevoada ao fundo, e o casal meio jururu.

Abrem as asas para receber o sol da manhã, e fazem minuciosa limpeza das suas penas. O curioso é que de vez em quando a fêmea – ou que me parece ser ela – salta do parapeito para dentro do terraço. O macho passa um largo tempo olhando para baixo, para dentro daquele espaço aberto que eu não alcanço com meus olhos. Desconfio que ali exista um ninho.

 Zaribu em manhã fria, mas ensolarada, no parapeito do terraço, parece olhar à placa na parede, porém ele nada entende, coitado, porque urubus são analfabetos até à morte...

...mas quem sabe se por intuição, ou através de seu olfato muito apurado, ele
 sinta o cheiro da carne e fique na esperança de um pedacinho ali esquecido e deliciosamente apodrecido?

Nos dias frios deste inverno, vejo-os desde o amanhecer pelas bordas altas do prédio. Quando chove, ficam lado a lado macambúzios, tristes, mas é só parar a chuva ou o chuvisco, que ambos abrem as asas, um de cada vez ou simultaneamente, talvez à espera de um raiozinho de sol, e ali continuam a enfrentar a friagem. Algo estranho que os urubus fazem: para fazer face ao vento frio, em vez de fechar as asas para aquecerem-se, eles também as abrem. De fato nós, humanos e leigos, nada entendemos da lógica dos urubus.

 Em dia frio, com garoa, Zaribu abre as asas desejoso, em vão, por algum calor que seque suas penas, enquanto Zaribua olha distraída para um horizonte enevoado.

 
O casal molhado e desalentado.

Ao contrário do meu preconceito desde a infância, os urubus são bichos tímidos e retraídos, mas doces, simpáticos, quase bonitos, apesar de viverem a comer carniças, isto é, animais mortos. Mas que animais mortos poderão alimentar os tantos urubus que às vezes vejo voando em círculos nos céus de Curitiba? Talvez as ratazanas que morrem dentro dos terrenos baldios e abandonados.

Ao final de cada manhã Zaribu e Zaribua desaparecem. Creio que voam para longe da cidade, talvez para as matas além da área metropolitana, em busca de animais putrefatos.

Os urubus, longe de desprezíveis, são aves muito importantes para a ecologia porque se alimentam somente de carne em decomposição, e assim limpam o ambiente. Não comem nem milho, que faz as delícias de suas primas galinhas. É estranho que, comendo carne podre, os urubus não adoençam. Certamente existe em seu sistema imunológico algo que os impede de adoecer.

Procurei por informações na internet e descobri que as fêmeas dos urubus botam apenas dois ovos por período fértil, que eclodem após 32 a 39 dias. Os filhotes nascem claros, e escurecem com o tempo. Eles vivem de 8 a 12 anos, e estão prontos para se reproduzir aos 3 de idade. É uma pena que minha vista não alcance o interior do terraço, e aí consiste o mistério. O que os dois fazem quando ali estão? E quando vejo que apenas um deles desaparece um metro abaixo, dentro daquela área aberta, imagino que seja a Zaribua chocando os ovos.

Entretanto existe vida humana no apartamento de cobertura. Nunca vi esses vizinhos discretos, mas sei que ali existe alguém porque as janelas que dão para o terraço algumas vezes estão abertas, outras fechadas, ou parcialmente abertas, o mesmo se dando com as cortinas persianas. Serão humanos ecologistas que respeitam a invasão dos urubus? Parece-me claro que eles sabem que os urubus estão por ali, pois devem restar penas no chão e muito cocô também nos largos parapeitos. O casal de urubus gosta de variar um pouco de “puleiro”, permanecendo algum tempo lá no alto da casa de máquinas, nas saliências da arquitetura de variados pontos, mas sua preferência recai sempre pelo parapeito do terraço.

No ponto mais alto do prédio.

Nesta manhã do dia 24 de agosto de 2020 há muito sol. Faz frio, mas a manhã é ensolarada, poucas nuvens e céu muito azul. Há pouco Zaribu e Zaribua estavam andando para lá e para cá no parapeito. Abrem as asas nitidamente acolhendo os raios solares, andam com elas abertas, mas quando um cruza com o outro ambos encolhem um pouco as asas para que o espaço permita a passagem dos dois andando simultaneamente sobre o parapeito. Olham para baixo, para longe, para os lados, e sempre me observam fixamente. Devem achar que sou um bicho qualquer, contudo amistoso.

 Para a alegria do casal, o sol imperou e cada um deles buscou expor-se mais convenientemente aos raios solares.

 
Os urubus aproximaram-se mutuamente e, com movimentos que denotavam ânimo, lançaram-se ao mesmo tempo ao espaço, passando a uns dois metros da minha janela com os olhos brilhando, e desapareceram em direção ao sol.

Há pouco vi que apenas um deles – a Zaribua? – pulou para dentro do terraço. De resto, fico aqui na rotina do meu dia a dia de isolado, atento às notícias do país, que está uma porcaria nas mãos de um esquizofrênico irresponsável que um dia haverá de ser julgado e condenado por um tribunal internacional, longe dos bostas (desculpem-me, mas foi ele, não eu, quem assim os denominou) seus apoiadores. Será preciso esperar pelas novas eleições. É claro que, entretanto, uma das minhas maiores expectativas, senão a maior, é pela vacinação contra a covid 19 em todo o planeta, lá por meados de 2021, espero que não em 2022. Outra expectativa é ver os dois urubuzinhos filhotes andando sobre o parapeito do terraço do prédio vizinho, olhando para baixo, criando coragem para enfrentar o seu primeiro voo. Felizes os urubus que são independentes, que gostam de carniça e que não entendem de política.

Vida longa a Zaribu, Zaribua e a sua feliz próxima prole.

-o-

Francisco Souto Neto num intervalo da leitura de “A Peste” (sobre a mesa), de Albert Camus.

-o-

5 comentários:

  1. Um pitoresco conto na pandemia de um casal de urubus(aves)felizes, pois não entendem de política (politicagem) e nela não se envolvem... Políticos não são jogadores de futebol, não merecem envolvimentos nem torcidas: Tem de ser constantemente cobrados pelo cumprimento de suas promessas de campanha. Melhor seria que o voto fosse distrital e que houvesse recall... Mas nem com isso os animais precisam se preocupar.

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    1. Caro Carlos Oswaldo Bevilacqua, criar este texto com tantas "bobagens conscientes" foi o que mais me divertiu nos últimos tempos. Fotografar o cotidiano dos urubus também! Obrigado por escrever.

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  2. Padrinho. Sua crónica é muito boa. O seu humor também está ótimo numa pitada irônica. E, seus comentários sobre o atual momento político, está perfeito. Acho que viver bem é isso: poder obervar a natureza e os seres pertencentes a ela. É boa vivência!

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