O prédio vizinho, visto do meu quarto.
A
VIDA ESCANCARADA DE MEUS SIMPÁTICOS VIZINHOS
por Francisco Souto Neto
Comendador Francisco Souto Neto
Quem,
como eu – que se encontra em quarentena
por causa da pandemia que assola o mundo –, quando se sente enfadado de tanto ler, de espanar
o pó da casa, de assistir a muitos programas e noticiários da televisão, de
ouvir música, de ficar no teclado do computador, de se atrever nas teclas do
piano e de assistir a centenas de filmes, o que resta é olhar o mundo exterior
pela janela. Observar, muito abaixo, os carros, e na rua gente mascarada ou
não, as atividades de pessoas dentro dos seus escritórios e apartamentos nos prédios ao redor,
o movimento das nuvens, o voo dos pássaros e as alvoradas e crepúsculos.
Hoje
quero referir-me a um casal que vive num prédio que fica aos fundos do meu, que
avisto não apenas das duas janelas do meu quarto, mas também da minha área de serviço
e do quarto de empregada. O apartamento duplex de cobertura situa-se à altura
do meu andar; só a caixa d’água e a casa de máquinas do elevador ficam acima do
meu ponto de vista.
Não sou
indiscreto, porque esse casal – que apelidei Zaribu e Zaribua – mostra-se com
naturalidade. Ambos, mas não sempre, me parecem meio tristes, sorumbáticos. Já
há alguns meses, antes mesmo da pandemia, notei primeiro o macho. Quero dizer,
não tenho muita certeza, mas creio que era o macho, e ele me pareceu um urubu muito
solitário.
Mas na
sequência, foi o meu amigo Rubens quem percebeu que ele não era solitário, pois
passou a fazer-se acompanhar de quem seria a fêmea, ou vice-versa, pois ninguém
sabe distinguir o sexo dos urubus. Ou, provavelmente, um expert saiba distinguir os gêneros, porém isto não é o que importa.
O que vale ressaltar é que eu – quem diria?! – passei a observar os urubus,
meus simpáticos vizinhos.
Se a foto que está encimando este artigo for olhada
com atenção, será possível notar que os urubus estão sobre a caixa d’água do
prédio. Repito-a por esse motivo.
No princípio parecia um urubu solitário.
Na verdade, tratava-se de um casal. Aqui, num dos dias mais gélidos do ano, arrepiados de frio.
Olhando de perto, com auxílio de meu zoom, até que
um urubu não é tão feio. Meu amigo Rubens, vendo esta foto, achou Zaribu
parecido com aqueles juízes britânicos bem circunspectos que usam peruca branca, longa e encaracolada.
Os dois
estão sempre juntos. Pela manhã ficam nos vértices do prédio, até nos locais
mais altos, porém maior parte do tempo estão no parapeito do terraço da
cobertura.
Em dia muito frio, perto de 0°, com Ecoville
enevoada ao fundo, e o casal meio jururu.
Abrem as
asas para receber o sol da manhã, e fazem minuciosa limpeza das suas penas. O
curioso é que de vez em quando a fêmea – ou que me parece ser ela – salta do
parapeito para dentro do terraço. O macho passa um largo tempo olhando para
baixo, para dentro daquele espaço aberto que eu não alcanço com meus olhos. Desconfio
que ali exista um ninho.
Zaribu em manhã fria, mas ensolarada, no parapeito do terraço, parece olhar à placa na parede, porém ele nada entende, coitado, porque urubus são analfabetos até à morte...
...mas quem sabe se por intuição, ou através de seu
olfato muito apurado, ele
sinta o cheiro da carne e fique na esperança de um
pedacinho ali esquecido e deliciosamente apodrecido?
Nos dias
frios deste inverno, vejo-os desde o amanhecer pelas bordas altas do prédio.
Quando chove, ficam lado a lado macambúzios, tristes, mas é só parar a chuva ou
o chuvisco, que ambos abrem as asas, um de cada vez ou simultaneamente, talvez à
espera de um raiozinho de sol, e ali continuam a enfrentar a friagem. Algo
estranho que os urubus fazem: para fazer face ao vento frio, em vez de fechar
as asas para aquecerem-se, eles também as abrem. De fato nós, humanos e leigos,
nada entendemos da lógica dos urubus.
O casal molhado e desalentado.
Ao
contrário do meu preconceito desde a infância, os urubus são bichos tímidos e
retraídos, mas doces, simpáticos, quase bonitos, apesar de viverem a comer
carniças, isto é, animais mortos. Mas que animais mortos poderão alimentar os
tantos urubus que às vezes vejo voando em círculos nos céus de Curitiba? Talvez
as ratazanas que morrem dentro dos terrenos baldios e abandonados.
Ao final
de cada manhã Zaribu e Zaribua desaparecem. Creio que voam para longe da
cidade, talvez para as matas além da área metropolitana, em busca de animais
putrefatos.
Os urubus,
longe de desprezíveis, são aves muito importantes para a ecologia porque se
alimentam somente de carne em decomposição, e assim limpam o ambiente. Não
comem nem milho, que faz as delícias de suas primas galinhas. É estranho que,
comendo carne podre, os urubus não adoençam. Certamente existe em seu sistema
imunológico algo que os impede de adoecer.
Procurei
por informações na internet e descobri que as fêmeas dos urubus botam apenas dois
ovos por período fértil, que eclodem após 32 a 39 dias. Os filhotes nascem
claros, e escurecem com o tempo. Eles vivem de 8 a 12 anos, e estão prontos
para se reproduzir aos 3 de idade. É uma pena que minha vista não alcance o
interior do terraço, e aí consiste o mistério. O que os dois fazem quando ali
estão? E quando vejo que apenas um deles desaparece um metro abaixo, dentro
daquela área aberta, imagino que seja a Zaribua chocando os ovos.
Entretanto
existe vida humana no apartamento de cobertura. Nunca vi esses vizinhos
discretos, mas sei que ali existe alguém porque as janelas que dão para o
terraço algumas vezes estão abertas, outras fechadas, ou parcialmente abertas,
o mesmo se dando com as cortinas persianas. Serão humanos ecologistas que
respeitam a invasão dos urubus? Parece-me claro que eles sabem que os urubus
estão por ali, pois devem restar penas no chão e muito cocô também nos largos
parapeitos. O casal de urubus gosta de variar um pouco de “puleiro”, permanecendo
algum tempo lá no alto da casa de máquinas, nas saliências da arquitetura de
variados pontos, mas sua preferência recai sempre pelo parapeito do terraço.
No ponto mais alto do prédio.
Nesta
manhã do dia 24 de agosto de 2020 há muito sol. Faz frio, mas a manhã é
ensolarada, poucas nuvens e céu muito azul. Há pouco Zaribu e Zaribua estavam
andando para lá e para cá no parapeito. Abrem as asas nitidamente acolhendo os
raios solares, andam com elas abertas, mas quando um cruza com o outro ambos
encolhem um pouco as asas para que o espaço permita a passagem dos dois andando
simultaneamente sobre o parapeito. Olham para baixo, para longe, para os lados,
e sempre me observam fixamente. Devem achar que sou um bicho qualquer, contudo
amistoso.
Para a alegria do casal, o sol imperou e cada um deles buscou expor-se mais convenientemente aos raios solares.
Os urubus aproximaram-se mutuamente e, com movimentos
que denotavam ânimo, lançaram-se ao mesmo tempo ao espaço, passando a uns dois
metros da minha janela com os olhos brilhando, e desapareceram em direção ao sol.
Há pouco
vi que apenas um deles – a Zaribua? – pulou para dentro do terraço. De resto,
fico aqui na rotina do meu dia a dia de isolado, atento às notícias do país,
que está uma porcaria nas mãos de um esquizofrênico irresponsável que um dia
haverá de ser julgado e condenado por um tribunal internacional, longe dos
bostas (desculpem-me, mas foi ele, não eu, quem assim os denominou) seus apoiadores. Será preciso
esperar pelas novas eleições. É claro que, entretanto, uma das minhas maiores
expectativas, senão a maior, é pela vacinação contra a covid 19 em todo o
planeta, lá por meados de 2021, espero que não em 2022. Outra expectativa é ver
os dois urubuzinhos filhotes andando sobre o parapeito do terraço do prédio
vizinho, olhando para baixo, criando coragem para enfrentar o seu primeiro voo.
Felizes os urubus que são independentes, que gostam de carniça e que não
entendem de política.
Vida
longa a Zaribu, Zaribua e a sua feliz próxima prole.
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Francisco Souto Neto num intervalo da leitura de “A
Peste” (sobre a mesa), de Albert Camus.
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