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A
REVOLTA DA VACINA DE 1904
e
A
PANDEMIA NO BRASIL DE 2020
Francisco Souto Neto
Enquanto neste fim de 2020 dezenas de países,
alguns muito menos importantes que o Brasil, estão vacinando suas populações
contra a pandemia, nós continuamos sem definição de uma data para o início da
vacinação em nosso país, com contaminações e mortes diárias crescendo verticalmente
e atingindo níveis gravíssimos. Todos os Estados brasileiros estão com a
lotação de seus hospitais chegando a um temível colapso, o que implicará em
falta de leitos para tratamento de pacientes infectados pela covid-19.
Estamos cientes de que, além de tudo, um dos
problemas encontrados pelo governo para iniciar a vacinação em massa, além de
ainda não existirem vacinas disponíveis, é a dificuldade para a compra de
insumos, isto é, de seringas para aplicação das referidas vacinas, o que ocorre
por negligência e falta de planejamento por parte do governo federal. Enquanto isso, a escalada de contágio e de
óbitos parece significar para o presidente da República apenas números sem
muita importância.
Como não bastasse, a parte da população que é mal informada, acredita no absurdo de que a vacina chinesa – que já está imunizando populações de vários países – é perigosa, que pode alterar o genoma humano, que carrega microchips e contém até vírus da aids com o propósito de prejudicar a saúde de quem for por ela inoculado.
A
Revolta da Vacina de 1904
O estranho estado de coisas que se verifica em todo o país em relação à pandemia, fez-me lembrar de um capítulo da História do Brasil, que desde o tempo dos bancos escolares é conhecido de todos nós – ou pelo menos das pessoas mais bem educadas – com o título de “Revolta da Vacina”, que ocorreu em 1904.
Há 116 anos o Rio de Janeiro, capital do Brasil, era
uma cidade com um deficiente, para não dizer quase inexistente, sistema de
saneamento básico. Epidemias de varíola, febre amarela e peste bubônica eram
frequentes e causavam grande mortalidade na população. O presidente Rodrigues
Alves resolveu então implantar um sistema de reurbanização associado a inovador
programa de saneamento básico, e designou o médico Oswaldo Cruz para organizar o
combate às epidemias.
Foi aprovada a lei que tornou a vacina obrigatória.
Teve que ser assim, porque a maciça maioria do povo desconhecia os benefícios
que uma vacina traria para todos, e porque ouviram comentários de que a vacina consistia
no líquido tirado das pústulas de vacas doentes, e todos ficaram temerosos de
serem inoculados com tal líquido. Ainda pior eram os ridículos boatos de que
homens e mulheres teriam que ficar nus para receber a vacina que seria aplicada
em suas “partes íntimas”. E o populacho sem entender o que de fato representava
a vacina, revoltou-se por acreditar que esta, além de humilhante, era ineficaz
e perigosa.
Teve início uma grande revolta popular contra a vacina, que ocorreu entre 10 e 16 de novembro de 1904. O jornal Gazeta de Notícias registrou para a posteridade em sua edição de 14 de novembro de 1904: “Houve de tudo ontem. Tiros, gritos, vaias, interrupção de trânsito, estabelecimentos e casas de espetáculos fechadas, bondes assaltados e bondes queimados, lampiões quebrados à pedrada, árvores derrubadas, edifícios públicos e particulares deteriorados”. O governo chegou a declarar estado de sítio porque a revolta estava se transformando numa revolução. A muito custo a rebelião foi contida, porém resultou em 50 mortos e mais de 100 feridos. Houve centenas de prisões e de deportações de prisioneiros para os confins do Acre.
Sempre acreditei que esse grande incidente tenha
acontecido porque o povo, há mais de um século, era desinformado, e que algo
semelhante jamais ocorreria no mundo atual, neste tempo em que contamos com
incríveis meios instantâneos de comunicação, como a internet.
Nova
reação contra a vacina 116 anos depois
Por incrível que pareça, neste ano de 2020, uma antes inimaginável pandemia envolve inteiramente o planeta numa apavorante escalada de contaminações aos milhões e de mortes incontáveis. O Brasil, contudo, parece continuar habitado por pessoas que têm a mentalidade e ignorância ao nível daqueles que há 116 anos revoltaram-se ante a obrigatoriedade da vacina. Essas pessoas atuais mas de mentalidade primitiva, manifestam-se pelas redes sociais contra a vacina, influenciadas pelo incompetente, obscurantista e negativista atual presidente da República. Desde o começo do contágio no Brasil em fevereiro do ano que está terminando, ao contrário do que se poderia esperar de um estadista, Bolsonaro insurgiu-se contra a existência de uma pandemia, e depois, face ao desesperador aumento de contágios e mortes, desestimulou ao máximo a utilização de vacinas para conter o mal. Sempre que se referiu à pandemia pela covid-19, provocada pelo novo coronavírus, ele menosprezou e até debochou das preocupações dos mais bem informados, e mostrou-se contrário ao uso de máscaras. Há apenas três dias ouvimo-lo, pela televisão, insistindo – em seu doentio negacionismo – que a epidemia no Brasil está “no finalzinho”, quando na verdade ela acaba de atingir índices de expansão catastróficos.
Embora as recomendações das autoridades sanitárias
insistam na necessidade de manter-se isolamento social, distanciamento entre as
pessoas e uso de máscara, no Natal houve aglomerações e festas por todo o país,
e multidões lotam as praias para comemorar o réveillon. Não respeitam as
recomendações para que fiquem em casa nestes feriados de fim de ano. O que
veremos será o fatal recrudescimento da nefasta moderna peste, com milhares de
crescentes mortes diárias em todo o país, vitimadas pela covid-19.
Sinto-me inerme para prosseguir comentando as
vilanias desse patético e inescrupuloso homem que foi posto na presidência da
República, e desanimado ao constatar a profunda ignorância de larga parcela da
população brasileira que o segue, aplaude e apoia. Por isso, para dar um desfecho a este meu
artigo, ao ler uma publicação feita ontem pelo meu amigo Rubens Faria
Gonçalves, resolvi transcrevê-la na íntegra, já que aquele texto diz exatamente
o que eu gostaria de expressar aqui:
Palavras
de Rubens Faria Gonçalves
“Fico
perplexo quando acompanho pela imprensa o aumento vertiginoso dos casos diários
de mortos e contaminados pela Covid-19, e mais perplexo fico ao observar o
desleixo irresponsável das autoridades políticas e de um grande número da
população em relação aos cuidados necessários nas atuais circunstâncias.
Confesso
que tudo isso só leva a sentir-me muito triste por ser brasileiro e morar neste
país que afunda diariamente qual barco sem rumo com o casco furado, sem
tripulação competente e sem capitão, nas ondas de um deus-dará.
Quando o
novo governo foi eleito, era fácil antever que viriam tempos nada bons, porém
jamais, em momento algum, eu poderia imaginar o cenário desses últimos meses.
No
calendário gregoriano, que rege o ano civil no país, o ano termina, outro
começa, há comemorações, renovam-se as esperanças, trocam-se votos de Feliz Ano
Novo...
Mas que
Feliz Ano Novo é esse? Não consigo imaginar um Ano Novo feliz no atual momento
histórico.
Não
haverá um Feliz Ano Novo enquanto as pessoas não estiverem imunizadas, e isto
somente poderá ocorrer quando houver vacinas disponíveis para toda a população.
E não
apenas vacinas!
Vacinas, seringas e competência política em quantidade suficiente”.
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