Iza Zilli
Comendador Francisco
Souto Neto
Os italianos de Savona
Francisco Souto Neto
No ano de 2001 tive que ir à cidade de
Savona, ao norte da Itália, porque dali partiria o navio que me levaria em
cruzeiro pelo Mediterrâneo. Embora as publicações sobre a Ligúria nada
apontassem de grande interesse a respeito de Savona, eu, que me considero um
turista independente, resolvi chegar à localidade com três dias de antecedência
ao embarque no Costa Riviera, para poder conhecer e vivenciar a antiga cidade
portuária e seus arredores.
Uma Savona escura e atemorizante
Devido a um atraso do trem, cheguei a Savona
quando já era noite. Achei a estação ferroviária esquisita e escura. Sua porta
desembocava numa enorme escadaria, desagradável obstáculo para as rodinhas da
minha mala. Do outro lado da rua mal iluminada, vi apenas um matagal. Talvez
mais “perdido” do que eu, um senhor que estava saindo da estação, olhou para
aquele mato e comentou em italiano com forte sotaque: “Isto se parece com a
Bulgária”. Pensei: “Só se for a Bulgária após um bombardeio”.
FOTO 1 – Escuridão...
Eu
tinha uma reserva no Hotel Savona, distante uns 500 metros da
estação. Não havia táxi, e fui a pé puxando a mala até ao destino. Meus passos
ecoavam pelas ruas vazias e silenciosas. Temi ser assaltado e me apressei. Após
o grande terreno baldio, passei pela Piazza Aldo Moro, àquela hora sem uma viva
alma, atravessei uma ponte e cheguei ileso à Piazza Del Populo, onde se
localizava o meu hotel.
Na
manhã seguinte, observei pela janela as árvores da praça e o movimento das
pessoas. Uma senhora de bastante idade que vinha carregando pesada sacola de
supermercado, sentou-se num dos bancos e começou a movimentar os pés no ar.
Depois contornou aquele banco e, segurando-se numa das laterais, abaixou-se por
algum tempo e levantou-se. Repetiu por muitas vezes a flexão dos joelhos.
Percebi que ela se exercitava no caminho entre o mercado e a sua casa. Fui ao
banheiro, escovei os dentes, voltei à janela, e lá continuava a senhora a
exercitar-se, enquanto sua sacola repousava sobre o banco. Naquele exato
momento passei a gostar de Savona, sem saber ainda que a cidade me reservava
muitas outras situações de extremo brilho humano.
Uma Savona brilhante e encantadora
FOTO 2 – Rua que conduz ao porto, ao fundo. As
calçadas cobertas por galerias são uma característica da cidade e da região.
FOTO 3 – Magnífica esquina de Savona.
FOTO 4 – O porto de Savona.
FOTO 5 – Francisco Souto Neto em frente a exuberante
jardim de Savona.
Optei
por um passeio a pé, em direção às praias. Após uns cinco quarteirões de
riquíssima arquitetura e lojas finas, avistei o azulíssimo Mar da Ligúria. De
repente vi surgir ante meus olhos um mundo todo diferente. Numa extensa rua
para pedestres, paralela à praia, passeavam pessoas muito velhas,
exageradamente elegantes. No lado da rua oposto à praia, havia jardins repletos
de parques onde observei uma febril atividade de crianças. Como num quadro de
Brueghel, havia ali todo gênero de jogos infantis. No outro lado estava a praia
propriamente dita, mas muito diferente das que vemos no Brasil. Um curto espaço
das areias era livre. A partir dali, a cada trecho de uns 40 metros, havia
cercas de delimitavam os diversos espaços pagos de praia particular, onde as
pessoas encontram cabines para trocar de roupa, chuveiros, espreguiçadeiras e
guarda-sóis coloridos. A areia desses espaços particulares era incessantemente
varrida pelos empregados. À disposição dos usuários havia bares e lanchonetes
de aspecto asséptico. Notei que as pessoas mais velhas ficam deitadas nas
espreguiçadeiras, enquanto os adolescentes e crianças brincam manualmente com
bolas. Eram centenas as pessoas que se divertiam nas praias pagas, mas
curiosamente ninguém se atrevia a molhar mais do que os
pés. Apenas umas cinco pessoas andavam ao quebrar das ondas, mas
ninguém nadava. Andei cerca de um quilômetro pela calçada, que fica uns
quatro metros acima do nível das praias, sem ver uma única pessoa nadando,
embora as areias particulares estivessem cheias de gente. Trata-se, pois, de
uma questão cultural: os savonenses gostam de estar na praia, e não do banho de
mar, e assim é.
FOTO 6 – Atrás de Francisco Souto Neto, as praias
particulares. À esquerda da foto, vêem-se pessoas jogando na areia. Na
extrema direita, um pouco fora da foto, localiza-se a Passeggiata Walter Tobagi, com suas árvores, exclusivamente para pedestres.
Amarcord de Fellini na praia à noite
É
como se existissem três diferentes Savonas: a do centro da cidade cosmopolita,
a do seu porto e a da praia. Se esta última pareceu-me interessante durante o
dia, sua faceta noturna, sobretudo no setor livre e, portanto, grátis,
mostrou-se surpreendente. É que além dos habituais donos de cachorros – e vi
uma moça dividindo o sorvete com seu cão guloso, ambos alternando-se nas
lambidas – e das crianças brincando à Brueghel, havia barracões a beira-mar
enfeitados com bandeirinhas que abrigavam palcos, nos quais dançavam casais
embalados por músicos e cantores apreciados por pessoas que bebiam sentadas em
frente a mesinhas armadas na areia.
Num
desses palcos destacavam-se dois pares, o primeiro formado por duas mulheres de
meia-idade que dançavam com admirável sincronismo, seus pezinhos ágeis e
rápidos elevados pelos saltos altos; e o segundo por um senhor calvo, muito
barrigudo, e sua mulher bem baixinha. Aquele barrigão afastava a bailarina, mas
ainda assim rodopiavam com segurança, beleza e alegria.
Os
aromas variados, compostos dos perfumes das pessoas e das cozinhas das
lanchonetes ao ar livre, temperavam o footing, principalmente dos
idosos. Vi três senhoras passeando de braços dados – como a Gradisca de Fellini
e suas duas amigas – mas todas elas de cabelos brancos, com batom vermelho,
saltos altos e muito elegantes. Elas passaram em frente a um velhinho garboso
sentado num dos bancos, que com elas flertou sem dissimulações.
FOTO 7 – Nesta cena de Amarcord, de Federico
Fellini, três amigas (Gradisca, a atriz Magali Noel, ao centro) fazem o footing,
com a Gradisca apoiada no braço de cada uma das amigas, tal como as senhoras idosas
da Passeggiata Walter Tobagi de Savona.
Como
num filme felliniano, tudo era extremamente belo e inacreditável para quem vive
no nosso Brasil atual. E que privilégio o das crianças que brincam dia e noite
na segurança dos parques, e o dos idosos bem tratados que vivem em países
civilizados, que se vestem bem e que passeiam e namoram na praia sem o temor a
assaltos.
Em
suma, minha primeira impressão negativa de Savona se dissipou, enquanto esta, a
de uma cidade adorável, invejável e extraordinária, ocupou todo o espaço da
minha memória.
No
terceiro dia, ao embarcar no Costa Riviera, sentia-me em êxtase, encantado com
a singela beleza do cotidiano de Savona e com aquela italianada maravilhosa
e feliz.
FOTO 8 –
Alegres idosas de Savona
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